sábado, 1 de agosto de 2009

Pedro Medina - Uma história da caça


Amanhã é o primeiro domingo de Agosto, o que quer dizer que é o dia da romaria à Senhora da Saúde, em Reveles, terra de minha Mãe, e onde ainda tenho famíliares. Durante muitos anos ali íamos em peregrinação. Mas se o domingo é o dia da festa na capela, sita perto da linha do caminho de ferro, que nesse dia fazia ali uma paragem, a festa 'pagã' é no dia seguinte, especialmente da parte da tarde, com a realização de jogos tradicionais e arraial.

Começo por pedir desculpa a algum leitor, se o tiver, mas, na verdade, o pensamento desta festa levou-me a recordar uma história passada com meu Pai, Pedro Medina, que era um dos principais animadores daquelas tardes. Aqui deixo, pois, recordada uma das suas histórias. E esta é de caça.
(Numa das tardes de segunda-feira, nas Festas da Senhora da Saúde, em Reveles)

Meu pai, Pedro Medina, era aquilo que se podia considerar como um irreverente e um repentista. Por índole, era uma pessoa bem disposta, sempre amigo do seu amigo, incapaz de causar problemas a quem quer que fosse, mas sempre pronto para pregar a sua “partidinha” inocente, mas cheia de oportunidade e graça. Poderia contar muitas historietas sobre ele, qual delas a mais engraçada. Vamos a esta, a que dou o nome de uma história da caça.
Naqueles tempos, havia em Tavarede um grande número de caçadores. A partir do princípio de Outubro, quando abria a época da caça, era vê-los por esses pinhais e montes fora, espingarda pronta a disparar, enquanto outros batiam silvados e moitas com os seus varapaus e os cães farejavam, numa constante busca de coelhos e outras espécies.
Eles próprios preparavam o seu equipamento. Hoje, a tanta distância, arrepio-me só de me lembrar o perigo que meu pai, e outros, igualmente, corria quando, ao serão, ia para o sótão da nossa casa, para numa pequena mesa, alumiada a candeeiro a petróleo, carregar algumas dezenas de cartuchos para levar para a caçada, na cartucheira que transportava à cinta.
Uma lata com os chumbos, outra com a pólvora, a pequenita balança para fazer as pesagens, as buchas e outros acessórios, encontravam-se à sua frente. E, no meio de tudo isto, outra lata a servir de cinzeiro, pois meu pai era um fumador inveterado. Volta que não volta, parava o trabalho, tirava uma mortalha de papel fino, punha-lhe em cima a precisa quantidade de tabaco, que sacava da respective onça, enrolava com perícia, humedecia a cola do papel e estava pronto o cigarrito, que acendia na chaminé do candieiro, tudo isto com a lata da pólvora mesmo ao lado… Não tenho memória de ter ocorrido qualquer acidente, mas sem dúvida que o risco era bastante elevado e muito pouco acautelado.
Algumas, poucas, vezes os acompanhei aos domingos. Nunca me atraiu este desporto. Gostava, é certo, e muito, de passear pelos campos e pelos pinhais, mas apreciava muito mais uma pêra ou uma maçã que, de quando em quando, surripiava de uma árvore carregada de frutos, do que ouvir os disparos e, muitas vezes, ver os pobres dos coelhos tombarem feridos de morte.
Cada um levava o seu bornal com o correspondente farnel para o almoço e o cantil, ou cabaça, cheio de vinho, quase sempre da lavra própria, pois praticamente todos amanhavam pequenos pedaços de terra onde, invariavelmente, tinham uma dúzia de cepas que, por ocasião das vindimas e com a ajuda de alguns cântaros de água da nossa fonte, as uvas eram transformadas numa deliciosa água-pé, pois que de vinho não se podia intitular.
Quando a hora chegava, procuravam um dos locais conhecidos, propícios à pausa para a petiscada e um pouco de descanso, sempre tendo por perto uma fonte ou bica, de água fresca e pura, de que a nossa zona era bem fornecida. Comiam, os animais também, descansavam um bom bocado e, já refeitos, continuava a caçada, agora no sentido do regresso à aldeia.
Nem sempre traziam caça pendurada no cinto. Muitas vezes, coelhos e perdizes não colaboravam nada com os caçadores. Mas, apesar disso, regressavam felizes e satisfeitos por mais um dia passado no meio da natureza, em alegre convívio. E não me esqueça uma coisa: algumas vezes vinham sem caça, é certo, mas os bornais quase sempre vinham cheios de boa fruta. Aquelas encostas do Prazo, dos Condados, do Saltadouro e dos Pejeiros, entre muitas outras, eram enormes pomares onde a fruta não faltava, em quantidade e em variedade.
A historieta que vou contar refere-se a uma das tais caçadas, mas a essa eu não assisti, pelo que a recordo pelo que me contaram. Foi para o lado sul do Mondego, para as bandas do Alqueidão, e era um enorme grupo de caçadores daqui que se reuniram, em caçada previamente combinada, com companheiros de trabalho e de caça, daquela zona.
Desta vez, por esquecimento, ou já por malandrice, meu pai não pediu para lhe arranjarem o farnel. De madrugada, à hora de partir para a caçada com os amigos, vai ao armário onde estava a bolsa do pão, agarra num dos grandes, daqueles a que se chamavam “casqueiros” e abre-o ao meio, para fazer uma enorme sandes. Em seguida, apanha uma broa das que estavam na tábua, a broa era amanhada lá em casa, e, com muito cuidado, corta a parte de baixo, o lar da broa, e apara-a muito bem. Feito isso, mete a côdea da broa dentro do pão, embrulha tudo num grande guardanapo branco e guarda tudo no bornal. O cantil também já estava em ordem de marcha.
Foram de bicicleta até ao ponto de encontro, no Alqueidão. À hora marcada estavam todos reunidos e dirigiram-se ao local onde começava a caçada. Tiro daqui, tiro dali, confesso que me não recordo o que é que apanharam naquele dia, e, horas depois, chegam ao local previamente escolhido para o almoço.
Cada um tira o seu farnel e coloca-o à sua frente. Na sua maior parte levavam fritos, peixe, pastéis de bacalhau, pataniscas e omoletas. Outros optavam pelos enchidos ou umas fatias de carne assada. Meu pai tinha-se sentado, bornal ao lado, mas não se resolvia. Os outros estranharam. “Oh! Pedro, então não comes? O que é o teu petisco?”. Como que um pouco enfadado, responde que ainda não tinha vontade de comer, mas, para lhes fazer companhia, também se resolveu e tirou o embrulho do guardanapo para a sua frente. “Era para ter feito uma omeleta, mas lembrei-me que tinha lá um bom naco de presunto e, olhem, resolvi fazer esta sandes”, disse mostrando o guardanapo bem enrolado no pão.
Os outros estranharam. Ele levar presunto? E logo um pedação daquele tamanho? Não acreditavam. Então ele, cheio de paciência e abrindo um pouco o embrulho, mostra um dos lados em que ser via o pão aberto ao meio e com uma coisa escura dentro, que se lhes afigurou ser realmente presunto. Do imediato logo lhe disseram: “Oh! Pedro, deixa isso para o fim. Cortamos o pão com o presunto às tiras e é mesmo bom para acabarmos o petisco. Vai saber bem para um último copo”.
É claro que, interiormente, meu pai terá sorrido ao ouvir aquilo que já esperava. E vai daí, embrulha novamente o pão e, pastel daqui, uma fatia de carne dali, deu a volta a todos, não se mostrando nada sem vontade, como havia dito antes.
Quando já estava bem almoçado, estende-se à sombra de uma árvore e diz: “Eh! rapazes, agora já não consigo comer mais nada. Tomem lá o meu farnel e comam à vontade o pão com o presunto”.
Os outros, ávidos pela perspectiva de saborearem tão boa sobremesa, agarram de imediato o embrulho e com uma navalha bem afiada, preparam-se para a distribuição. Oh! Céus! Então não é que, mais uma vez, o Pedro os havia enganado? O tal presunto não era mais do que a côdea da broa e ele, que acabara de almoçar à grande e à francesa, à borla, tinha-os deixado a chuchar no dedo, agarrados a um bocado de pão que nem sequer cheirava a presunto! Disseram-lhe das boas, mas, pouco depois, tudo acabou às gargalhadas. Mais uma das brincadeiras dele, que teve graça e não ofendeu ninguém .

(Caderno: Tavarede - A terra de meus Avós - 3º.)

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