quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Um baptismo do ar - Medina Júnior

Desde que um dia poisei em Sintra, onde existe a Escola de Aviação da Granja do Marquês, que em meu íntimo prevalecia a grande vontade de voar, por môr de ver e admirar, do país dos passarinhos, tudo isto cá por baixo, por onde caminha a raposa - como pitorescamente dizem aqueles que, a respeito de voar...
...que vôem os outros, pois se encontram bem mais seguros em terra firme, calcurriando estradas e caminhos, montes ou vales...
Porém, e sem pretender ser mais valentão do que êsses outros, a ideia foi-se arreigando cada vez mais em meu espírito - e um dia dispuz-me a pedir que me voassem.
Não sei porquê, nunca me inclinei muito a pedir tal favor aos distintos e ilustres oficiais-aviadores da Granja do Marquês, que é possível não viessem a estabelecer qualquer dificuldade.
Todavia, não duvidando, de forma alguma, da sua honrosa competência, e não sendo bem medo da minha banda, mas uma coisa parecida, eu fui-me recordando das barbas do vizinho...
...e imediatamente punha as minhas de môlho.
É que na Granja - di-lo a fama, que possivelmente é filha dalgum proveito - os ilustres pilotos pintam-se por ferrarem a sua partidinha aos futricas caloiros do ar, e vai daí, esta ideia, se me fazia rir, também me causava a tal coisa a que, por desmedida benevolência do têrmo evocativo da dura verdade, se deve chamar... falta de coragem... - ou receio, como queiram...
Receio por mim, nem entendido, que não desejava tornar-me alvo dos duestos alheios, tanto mais que tão honroso e nobilitante profissionalismo não foi, não é e nem será nunca o preferido pela veia que caracteriza a minha vocação para qualquer coisa de útil cá neste mundo...
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Tenho lido, em diversos jornais e revistas, que lá fora, nos outros países, onde a Aviação tem seus foros de formidável (refiro-me, apenas, à quantidade e qualidade de aparelhos), é tarefa facilima proceder-se ao baptismo do ar seja de quem fôr que manifeste êsse desejo. Mais: que a rapaziada firme da Imprensa tem seu quê de privilégios sôbre outras quaisquer pessoas.
Ora esta distinção pelos jornalistas é absolutamente aceitável, se atendermos à delicada missão dos mesmos. É que, através da Imprensa, dos grandes como dos pequenos orgãos, só se pode fazer uma boa e acertada propaganda da Aviação - voando-se.
Os “reporters” tomam lugar num avião. Dão o seu passeio mais curto ou mais longo. Vêem, observam bem a sublimidade do ineditismo, experimentam as múltiplas sensações do vôo. Aterram. A alegria, o prazer, a satisfação experimentados no passeio, reflectem-se, depois, nas colunas dos jornais, onde, decididamente, não vão dizer o contrário do que de belo se disfructa do ar e da superior comodidade a bordo do veículo alado, pois tal seria utópico, inconcebível, anti-jornalistico.
E o que advem destas boas descrições, feitas consoante a inteligência de uns, a sensibilidade e sensação de outros?
Decididamente, uma rica propaganda para a Aeronáutica, que para tantissima gente ainda é considerada aventura de doidos. Assim mesmo: aventura de doidos...
No nosso país, infelizmente, ainda se não olha para a Aviação com aquele respeito e carinhosa consideração que lhe são devidos - por justiça. Para muitos portugueses, um avião é um engenho de morte. E quem neles se mete dentro - é um doido!!...
A “nossa” eterna tacanhez em tudo...
O avião, enquanto a nós, é a mais formal demonstração do quanto pode e vale o génio humano.
Disse alguém: “A Aviação é a Vida. Ela tem de ser olhada pelo que vale e nunca como um agrupamento de máquinas barulhentas e perigosas que, dirigidas por “desiquilibrados”, sulcam o espaço, rasgando curvas elegantes e vistosas nas suas evoluções audazes e acrobáticas, num desafio à morte! Não! Nunca! Voar não é morrer! É sentir a vida, sem peias, prenhe de liberdade, de fôrça, de inteligência, de domínio. O Avião deve ser julgado pelos que amam a Vida, pelos que querem Viver, como uma sacudidela acertada do Progresso, absolutra e indiscutivelmente prática e de vantagens inumeráveis para as necessidades da época em que é dado viver. O Avião frágil e aparentemente pouco seguro, é a chave da vida moderna”.
E é assim mesmo.
Desastres...
... quem dêles não é vitima, num automovel, numa motocicleta, num simples carro tirado a dois cavalos velozes ou a uma junta de bois pachorrentos?
E quem dêstes não é vitima inocente quantas vezes?
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Fui há dias almoçar com o meu estimado amigo, sr. tenente Humberto da Cruz. Contei-lhe a minha vontade - que poderia ser uma jornalicite aguda. Sorridentemente, o heróico dominador do espaço disse-me:
-Pois sim. Apareça você, um dia, bem cedo, na Amadora. Tenho muito prazer em ser o padre que ohá de baptisar no ar...
-Oh “velho” tenente (eu chamo-lhe “velho” tenente, porque o sinónimo abrange duas coisas: somos amigos desde a infância; e o glorioso Aviador apegou-se aos dois galões anda por doze anos...): fico-lhe muito grato pela sua franca acquiescência aos meus desejos, mas quero, ao mesmo tempo, pedir-lhe um favor: que não me ferre partida... - no ar.
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Após uma animadora garantia, eu aguardei, impacientemente, o dia do baptismo - que chegou, finalmente.
Manhã cedo. Sol doirado sombando sôbre o país terreno. Amadora. Os “hangars”. De lá de dentro, quais ninhos gigantescos guardando, tranquilamente, um bando de aves enormes adormecidas ao calor das próprias asas, sai a primeira. É uma avioneta ligeira, branquinha como uma pomba, parecendo sorrir-se para o sol, por a haverem libertado dali. Tinha ânsias de voar...
Velozmente, salta para seu seio, o pulso forte que a sabe dominar...
Depois, devidamente equipado - salto eu. Amarram-me. Os mecânicos riem-se...
... para mim. Eu retribuo a “gentileza”...
Contacto. As hélices movem-se, arrastando, atrás de si, uma nuvem enorme de terra pardacenta que jazuia no solo...
A ave, como que sentindo pejo de estar ali, corre, célere, campo em fora. Quási sem dar por isso, sinto-me no ar. Cinquenta metros, acusa, na minha frente, o altimetro. Cem metros. Duzentos, trezentos, etc. O ponteiro das rotações da hélice acusa um número que quási se segura sempre em 185 por minuto. A marcha faz-se a mais de 170 quilómetros à hora...
Voámos direito a Mafra. A gradação de cambiantes dos montes e dos vales, das várzeas e dos vergeis, a 500 metros e 600 metros, assemelham-se, francamente, a uma colgadura gigantesca, feita de pedacitos diversos de chitas polícromas que a mão habilidosa de uma senhora de bom gôsto soube aproveitar e congregar...
... sôbre elas se espreguiçando, em zigue-zagues voluptuosos, cobras muito compridas, brancas, umas; pretas, outras...
São as estradas.
Mafra. O secular convento. Passámos sôbre um amontoado de caixas de fósforos bem delineadas...
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Tôrres. Caldas da Rainha. S. Martinho do Pôrto. Que maravilha, a enseada de S. Martinho do Pôrto, vista lá de cima, do país das gaivotas...
Pinhal de Leiria, no seu manto verde-negro que encanta... A orla do mar imenso, no seu esmeraldino forte, por vezes manchado, aqui e acolá, pelo ensombrado das nuvens de puro algodão em rama... A espuma branquíssima das ondas, espreguiçando-se, lânguidamente, nas areias cintilantes das praias...
Tudo tão lindo! Tudo tão belo! Tudo tão formidável assunto, digno de descrição pela pena privilegiada de quem soubesse...
Eu confesso a minha insuficiência e eterna pequenês intelectual ante tão elevado altar de Ubérrima Beleza...
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Figueira da Foz à vista! A mão forte e vigorosa do “velho” tenente bate para a carlinga deanteira onde eu ia - felizmente tão decente como quando entrei no “barquinho”... Era a chamar a minha atenção para a nossa terra à vista...
O meu coração deu um estremeção fortíssimo - muito mais forte do que aquêles dois estremeções do avião, entre Caldas e S. Martinho do Pôrto, que eu supunha ser real partida do meu rico condutor, mas que foram devidos (soube-o na Figueira), a dois “senhores” poços de ar que ali existem...
Estamos sôbre a cidade moderna, a cidade bem delineada que é a minha terra. Casas gigantes, médias ou pequenas, são, para meus olhos, um amontoado polícromo de quadros simbólicos, bizarros, jactantes, que embevecem a avidez de meus olhos e embriagam o bairrismo de meu coração...
Nunca tinha visto, de tão alto, a minha terra! Conheço-a, como conheço as minhas mãos - e perdi-me, “dentro dela”, na carlinga de um avião...
O querido tenente adivinhou o meu pensamento: sobrevoar a Figueira a diversas alturas - para me maravilhar bem nela...
A Praça Nova... A Praça Freire de Andrade... O Bairro do Pinhal... O imponente Bairro Novo... A magestosa Praia... O poético Rio Mondego...
Tudo, tudo é lindo, ali, visto do ar... - ou em terra...
E o berço em que eu nasci? A Tavarede-burgo, tanta vez cantada por poetas e trovadores.. A terra da lúcia-lima...
A terra onde tenho, felizmente vivos, os meus queridos Pais, os meus irmãos - a minha família, os meus amigos, emfim...
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Murraceira. Campo “Humberto da Cruz”. Aterragem bonissima. Eu receiava a sensação da aterragem. Não é, afinal, aquilo que me diziam. Custa mais descer o elevador de Santa Justa...
O “homem do leme” salta em terra. Eu não sabia desamarrar-me. Ri-se, de mim, neste particular, o amigo tenente Cruz. Tira-me das correias fortes - e sorri-se, então, para mim...
Estávamos ambos contentes. Êle, por me ver bem disposto e alegre que nem um pardal que tem a ventura de se escapar à boca tigrina de um gato. Eu, por ver no tenente um companheirão para estas coisas de baptisar um sujeito no ar...
...sem novidade de espécie alguma - felizmente...
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Abraços. Vêm os primeiros abraços. Um rapaz alto, forte, varonil, que se conduz, ali, de bicicleta. É o meu irmão Ricardo. O mais novo do “quinteto” Medináceo...


Depois...
... quási na Ponte que atravessa o Mondego, uma mulher a correr...
... a correr muito...
Era minha Mãi! Sedenta de beijos, aquêle coração de oiro do mais puro e valioso, nunca supôs o seu filho mais velho capaz de uma odisseia assim...
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E lá fui, cheiinho de respeito e consideração, assistir ao grande beijo da Mãi Cruz ao seu queridíssimo Filho, ao seu Idolo, ao seu Amor - à sua Vida...
Eu também sei entrar na “catedral do Bem” - e beijar Santas assim...
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Passámos um rico dia na nossa terra. Mas mesmo um rico dia, francamente.
Depois, às 6 e meia da tarde, avião em marcha e a praxista marcha do tenente amigo sôbre o sagrado lugar onde repousam os restos mortais de seu saudoso Pai, em beijo de devoção por Êle, significando “adeus” - e tomámos a direcção do mar, que contornamos...
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e daí a pouco estamos, por outros “caminhos”, em Peniche, Berlengas, etc. Eu como, com imenso apetite, cerejas vermelhas que numa saca minha irmã Violinda havia levado ao mano aviador...
Eram, na Figueira, a cruzado o quilo! Em Sintra corriam a três mil reis...
Merecia pois a pena ir buscar uma saquinha de seis quilos delas, de avião, ali abaixo à terra...
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Estamos na Ericeira. Olhem que a Ericeira, vista de um píncaro assim, não é nada feiota, não senhores...
Depois... Colares - e Sintra. Que amor! Sintra! O vetusto Castelo dos Mouros e o magestoso Palácio da Pena sempre são muito anõesitos...
E o Palácio Nacional da Vila, ainda mais...
Vão. Vão lá acima ver e depois digam-me se tenho ou não razão em tal afirmar...
Anões, vistos da escada altíssima de onde eu os vi num relâmpago. Grandes, sempre muito grandes, vistos de onde quási tôda a gente os vê, os contempla, e os admira com ternura e embevecimento: em terra, no país das raposas,
onde se ergue o idilio terreal que enebriou Byron, inspirou Garrett - e nos embriaga a todos, seus sinceros e verdadeiros admiradores a amigos...
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Amadora. Aterragem. No firmamento amplo e limpo, começavam a notar-se os primeiros filões ígneos, denunciadores de um dia, mais, que tombava no regaço enigmático das trevas da noite que surgia...
A “ave” gigante, saciados os seus desejos de liberdade, ía recolher ao ninho enorme, onde a aguardavam, em carinhoso sorriso, tôdas as suas “irmãs”, possivelmente despeitadas pela sorte dela naquele dia...
... em que se registou o meu baptismo do ar - e o casamento da minha satisfação com o orgulho de voar com o “velho” tenente Humberto da Cruz...
... que não fêz, realmente, a sua partidinha ao “caloiro” que, em pouco mais de duas horas, percorreu o inesquecível itinerário de Amadora - Figueira da Foz - Amadora, quando, de combóio vulgar, são precisas algumas 13 ou 14 horas!
Abençoada seja, pois, a Aviação de todo o mundo - e o meu rico padre Cruz...

Sintra - Junho-935 - António Medina Júnior

(Copiado do Album Figueirense - 2º. ano)

Fotos: 1 . António Medina Júnior com o então Tenente Humberto da Cruz, antes da partida da Amadora; 2 . O irmão Ricardo, ciclista amador, com alguns prémios recebidos

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