segunda-feira, 19 de abril de 2010

Sociedade de Instrução Tavaredense - 23

A nossa história de hoje, embora não seja uma história da Sociedade de Instrução, está a ela ligada e ao seu teatro, por ter sido protagonizada pelo seu director cénico, José da Silva Ribeiro.
Num espectáculo levado a efeito no Parque Cine, em benefício da Misericórdia da Figueira da Foz, foi representada a peça “O Amigo Fritz”, que teve a particularidade de reunir, nos principais papéis, amadores da Associação Naval e do Ginásio Figueirense, nomeadamente Alda Pereira, Maria Virgínia Ribas de Sousa, Severo Biscaia, António Neves, José Esteves Martins e José Dias. O papel de “Fritz” foi desempenhado por José da Silva Ribeiro, e o de “Susél”, a protagonista, pela actriz Ilda Stchini, que também ensaiou e dirigiu a representação. Um verdadeiro elenco de luxo!
Na “Voz da Justiça”, de 3 de Outubro de 1931, sob o pseudónimo de “Espectador da 1ª plateia”, surge publicada uma crítica na qual, depois de elogiar e felicitar todos os personagens pelas magníficas interpretações dadas aos seus personagens, excepção feita a José Ribeiro, escreve:
“Deixámos para o fim a referência ao Fritz, que é o mais importante papel da peça.
Reconhecemos as suas dificuldades, e compreendemos que só um bom comediante, dotado de especiais faculdades, poderia vencê-las cabalmente.
Isso, porém, não deve impedir-nos, e não nos impede, de fazermos ao trabalho de José Ribeiro as restrições que nos parecem justas. Porque, na verdade, não podemos dar-lhe um elogio incondicional. Hão-de objectar-nos que se trata de uma récita de amadores. É verdade. Mas estes amadores são de tal categoria e têm tais responsabilidades – representaram com Ilda Stichini e foram ensaiados por ela... – que merecem, em homenagem ao seu valor, ser apreciados como profissionais. De resto, os leitores deste jornal, não estranharão, porque assim foram tratados os amadores que aqui na Figueira representaram certa peça ensaiada por uma actriz de grande nome no teatro português.
Esclareçamos ainda um outro ponto: não é por José Ribeiro ser crítico teatral que vamos exigir-lhe que seja... actor, como se exige dum crítico de pintura que seja... pintor. Não tem nada uma coisa com a outra. Mas a verdade é que, se o crítico não se sentia com forças para fazer de... actor, quem o mandou subir ao palco? Porque deixou a sua cadeira vizinha daquela em que me sentei, onde ele gosta de estar e onde nós gostamos de o ver?
José Ribeiro venceu em muitos pontos as dificuldades tremendas do seu papel; noutros, porém, sucumbiu.
Duma maneira geral pareceu-nos que seguiu a linha própria da personagem, marcando-lhe sempre o carácter e assinalando-lhe o estado de espírito que a domina em cada acto: porque na verdade, sendo a personagem um só, sendo humana e tendo unidade, em cada acto se nos mostra diferente e cada acto tem de ser feito de maneira diferente. O 1º e o 2º demandam um esforço físico enorme e um meticuloso trabalho de composição: no 1º acto é o Fritz Kobus amigo de pândegas, comedor e bebedor, solteirão inconvertível, bonacheirão, a boca constantemente abrindo-se em gargalhadas que o fazem rebolar-se na cadeira de braços, como nos diz a sua velha criada; no 2º dominam as mesmas características, mas a graça singela, a beleza sem artifício cheirando a violetas e a habilidade culinária de Suzel tocaram-lhe a alma bondosa e inexperiente nestas coisas do amor – e agora, quando o vemos rir encantado com a rapariguita, o Fritz é uma criança grande. O 3º acto, onde vibra mais forte a nota sentimental, requere as faculdades dum artista e dum comediante. José Ribeiro compreendeu tudo isto – mas não pôde fazer isto tudo.
Logo de entrada nos impressionou desagradavelmente aquele cesto de garrafas que vinham da frasqueira dos Kobus: era uma coisa ignóbil. José Ribeiro não tinha o direito de apresentar-nos aquelas garrafas destapadas e uma ou duas com rolha... mas quase fora do gargalo. Uma, a que chamaram Riquevir, ou lá o que é, bem se viu ao encher dos copos para a saúde ao violinista, que vinha quase vazia!
E não teria José Ribeiro um espelho para ver pelo rosto que remoçara, e que em vez de aproximar-se dos 40 regressara aos 20? O corpo, o andar, certas atitudes estariam bem se a cara nos mostrasse mais uma dezena de anos, pelo menos.
Gostámos da cena com Suzél no 2º acto, dialogada com naturalidade. Foi bem marcada a gulodice pelas cerejas na forma como as comeu, engolindo as primeiras com caroço. Pena foi que não acompanhasse – e seria difícil! – Ilda Stichini quando esta ri na cerejeira, em gorjeios maravilhosos que o próprio rouxinol não suplantaria, e ele ri cá em baixo, no meio da cena. Faltou-lhe expressão. O monólogo junto ao poço, não nos satisfez inteiramente. Por sinal que, mal se encostou, o poço rangeu e logo na plateia se esboçou uma risada discreta. Insuficiências da montagem que também não passam – noblesse oblige... – sem o nosso reparo.
No 3º acto há pedaços bem representados e há hesitações evidentes. Bem marcado o final, quando reaparece o Fritz do 1º acto, já com o estômago curado”.
Não deixa de ser estranho, tanto mais que em “O Figueirense” se diz que: “José Ribeiro, que foi representar pela primeira vez, fugiu àquela regra prática de que um bom encenador é quase sempre um mau executante, pois que, arcando com um papel difícil, o desempenhou de forma a deixar satisfeito o mais exigente. É tão difícil saber rir, e ele até nisso cumpriu”. No número seguinte da “Voz da Justiça”, José Ribeiro, em nome do “Fritz Kobus”, responde da forma seguinte:
“O redactor que neste jornal costuma publicar as suas impressões de teatro, recebeu de “Fritz Kobus” a carta seguinte:
Amigo:
Aqui me tens a agradecer-te efusivamente a liberdade que concedeste ao sr. “Espectador da 1ª plateia, etc”. para dizer com largueza de sua justiça sobre a representação da comédia em que sou protagonista. E oh! que protagonista!
Agradeço-te porque, se não fôra a liberdade que concedeste para a publicação duma crítica que se estendeu por duas longas colunas de letra miudinha – mas que se entende muito bem... -, o meu trabalho passaria despercebido do público que não foi ao teatro, como se fôra uma interpretação banal esta com que me afoitei a escalar as muralhas da Fama e os píncaros da Glória (a Glória tem já os píncaros muito derribados), e eu seria forçado a contentar-me com as palmas dos amigos da claque que contratei para me consagrarem na récita famosa.
Supôs muita gente que eu ia ficar arrazado com aquela formidanda pratalhada de crítica, e o próprio cozinheiro chegou certamente a supor que aí lhe não aceitavam o pitéu, por vir carregadito de pimenta. Ora adeus! O estômago de ferro do “Fritz Kobus” funciona admiravelmente e digere sem maior esfôrço toda a espécie de pastelão.
Gostei da crítica, palavra de honra! E tanto que já dei ordem à Catarina para me separar da frasqueira uma dúzia de garrafas do tal vinhito cor de rosa das Olivettes, que hei-de mandar-lhe de presente. Porque ele tem razão. É verdade que podia ter dito aquilo com outro jeito, mas lá percebeu que eu não tenho pêlo por onde seja possível correr habilidosa mão, e por isso pôs ali tudo, preto no branco, “p á pá, Santa Justa”. Ora assim é que é. Amor com amor se paga...
Punhamos de banda a Ilda, essa extraordinária Artista que é tão grande no seu génio de comediante e no seu talento criador como no seu fulgurante espírito crítico. Se eu tivesse de falar dela, iria por aí fora em longa conversa sobre o que ela fez e se viu e sobre o que ela quis fazer e não pôde ver-se na comédia que tem por nome o meu. Perder-me-ia a discretear sobre o ambiente que deu à comédia, a valorização de efeitos que descobriu, o sentido teatral com que ergueu a peça e o ritmo que imprimiu à representação e em que consistiu o milagre de nos mostrar uma obra em que, sem a desrespeitar, os defeitos da idade passam despercebidos a nossos olhos. Aos meus companheiros nesta ascenção gloriosa que fizemos desde os pavimentos térreos – para onde a generosa empresa do teatro nos mandou e onde não havia sequer um banco ou uma tábua sobre que nos descalçassemos – à ribalta ofuscante do tablado, o sr. “Espectador da 1ª plateia”, etc não fez favor nenhum nos elogios que lhes dispensou, pois se trata de amadores considerados bons entre os melhores. E a mim – que diabo! – tu bem sabes que ele me fez justiça. Há certo rigor na atribuição de responsabilidades, como, por exemplo, naquilo das garrafas desrolhadas – grave delito, na verdade, sujeitar assim à azedia os preciosos vinhos dos Kobus! Eu podia desculpar-me lembrando que o actor não trata dos adereços: mas seria apenas uma explicação e não me justificaria do descuido de não ter evitado o precalço. Duma maneira geral, o improvisado crítico do teu jornal foi justo comigo.
Como haviam de magoar-me as suas tão sensatas restrições, que têm ainda o mérito da franqueza? E vamos lá, que ele podia ir mais longe, como certos críticos que não chegaram ao jornal e que foram para o teatro com binóculos de ver ao longe. Porque não sei se sabes que o binóculo, depois de muito ter procurado pelo chão, denunciou este meu grave delito: eu engoli cerejas sem lhe tirar o caroço, ou então eram cerejas... sem caroço! Que descuido o meu! E nem sequer já estou a tempo de provar aos de binóculo que efectivamente as cerejas tinham caroço... porque só agora, passados tantos dias, vim a saber da descoberta.
Muito a sério te digo: o que verdadeiramente me chocou foi o confronto com que desumanamente pretendeu esmagar-me um e não sei se mais dos vários críticos que assim vêm ao meu caminho, quando menos os esperava, a cortarem-me a carreira. Pois tu queres saber? Confrontaram-me com o Augusto! Sim, porque o crítico viu o Augusto, o Brasão, o Rosa – e era assim com eles “tu cá, tu lá, vamos ali ao Magalhãis”.
Oh! a ingratidão humana! Confrontar-me depreciativamente com o Augusto , - tu sabes, o Augusto, o Augusto Rosa, aquele que foi Actor! Porque eu, quando aceitei encarnar a figura em que te escrevo – e talvez te escreva noutra figura... – fi-lo com a certeza de apresentar coisa superiormente grande, senão para suplantar ao menos para igualar o Augusto! Foi com esta coragem que me atirei ao papel. Nem eu o aceitaria para outro fim!
Paciência! Desisto. A Suselzita me enxugará as lágrimas, e as mágoas hei-de afogá-las nos anestésicos da frasqueira herdada de meus avós. Renuncio à Fama e aos píncaros da Glória. E renuncio também ao monumento com que aí, numa praça, se havia de imortalizar o meu génio. Não seria um monumento de corpo inteiro: eu contentar-me-ia com um busto – desde que fosse um busto com braços, o que permitiria tomar as convenientes e propositadas atitudes de certas figuras das Caldas.
Quanto ao teu “Espectador da 1ª plateia”, etc, dize-lhe que marque lá duas à preta. E nunca as mãos lhe doam. Teu do coração – Fritz Kobus. (José Ribeiro)”
Pois bem, esclareçamos a verdade. O “espectador da 1ª plateia” e José Ribeiro eram uma e a mesma pessoa. Os jornais figueirenses não tinham ido muito longe nos seus comentários a este espectáculo e José Ribeiro, não podendo fazer uma crítica elogiosa a si próprio, mas desejando elogiar os seus companheiros de cena, usou este estratagema. Bem nos dizia ele, e muitas vezes isso aconteceu, que, enquanto jornalista, quando não tinha ninguém de quem dizer mal, dizia-o dele próprio!...

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