quarta-feira, 12 de maio de 2010

Quinta-feira da Ascenção

Se os passarinhos soubessem
Quando é dia da Ascenção
Não punham o pé no ninho
Nem o biquinho no chão

Quarenta dias haviam decorrido após a Sua ressurreição.
Então Jesus Cristo, cumprindo as profecias que assim já o haviam prenunciado, reuniu os seus discípulos no Monte das Oliveiras, o mesmo onde Judas Iscariotes o havia entregado aos soldados, e levantando as mãos os abençoou. Enquanto os abençoava foi-se elevando à sua vista, e subiu ao céu onde está sentado à direita de Deus, donde voltará, no Dia do Juizo, da mesma maneira por que foi para lá.
É assim que a Bíblia nos conta a Ascenção de Cristo ao céu.
Ora nesse dia, quinta-feira, cumpre-se, há já longos anos, uma tradição. É a apanha da espiga.
Esta, segundo os antigos, deve ser apanhada da parte da manhã e guardada em casa. Significa o guardar a espiga, pedir a Jesus Cristo a mercê de, durante o ano, nos não faltar com as coisas que ela simboliza e que são mais necessárias à nossa vida.
A espiga é composta do seguinte:
- Malmequeres amarelos e brancos - representam ouro e prata;
- Trigo - significa o pão;
- Papoulas encarnados - que pedem alegria;
- Um bocado de oliveira e parra - é o azeite e o vinho;
Além destas coisas, indispensáveis, há pessoas que também juntam centeio, aveia e até favas. Estas, assim como o trigo, representam o pão, que é o nosso principal alimento.
E é para pedir a Jesus Cristo que nunca nos falte com o ouro e com a prata, o azeite e o vinho, e finalmente com a alegria, que neste dia se vêem pelos caminhos dos campos, enormes grupos de raparigas que, alegremente, procuram aqui uma seara de trigo para apanharem uma espiga, além uma oliveira para colherem um bocadinho e mais adiante os malmequeres, as papoulas e as restantes coisas, para formarem assim a espiga, conforme manda a tradição.
O certo é que, por volta do meio dia, se vêem as raparigas regressar a suas casas, alegres e felizes, com o ramo na mão, no qual sobressai o vermelho garrido das papoulas, igual ao tom carminado das suas faces que o sol, atrevido, corou.
Ao chegarem a casa correm pressurosas a guardar a sua espiga, a qual só será atirada fóra quando no próximo ano for substituida por outra.
É assim ano após ano.
A tradição, já tão velhinha, continua. As raparigas não a deixam esquecer. É vê-las como anciosas esperam este dia.
Oxalá nunca a deixem morrer e que sempre possam continuar a ir apanhar a espiga com a paz e a alegria que a mesma representa
. (escrevi isto em 1957)

Bastante mais interessante, é este apontamento que recolhi da imprensa figueirense de 1928:

É amanhã, quinta-feira da Ascensão, em que bandos de raparigas moças, de lábios rubros, faces rosadas e olheiras fundas, correm estonteantes, borboleteando em redor das searas como uma nuvem de daninhos e alados pardais, na faina voluptuosa e risonha de colher a Espiga, que depois entrelaçam com as mais belas flores silvestres.
Cada espiga que vão colhendo é uma esperança que se aglomera no cérebro, cada flor cortada é um facho de luz mais puro que o sol benfazejo da primavera, que se lhes ilumina a alma e faz tanger a corda mais íntima do seu coração. É, pois, amanhã um grande dia, um dia santo, que até o mais libertino deve respeitar como o dia da Ascensão do Mártir do Calvário. “Se os passarinhos soubessem
…”.”

A espiga era colhida da parte da manhã e, da parte da tarde, havia saída para os pinhais, para mais uma costumada merenda. Algumas famílias optavam por ir passar o dia às termas da Amieira, onde se realizavam grandes festas, enquanto outras escolhiam uma ida ao Bussaco. Foi ali, aliás, na quinta-feira da Ascensão de 1938, que se fez ouvir, pela última vez, a tão afamada tuna de Tavarede.
E como era a merenda grande?:

Hontem, ao inicio da tarde, quiz-nos parecer que os nossos visinhos figueirenses tinham julgado ser dia de S. João cá na parvonia.
Por essas estradas além viam-se ranchos e ranchos de pessoas, e aqui na povoação passavam igualmente muitos outros com cestos enfeitados de verdura e flôres e recheiados de saborosos petiscos, que iam manducar á sombra d’árvores dispersas por ahi fóra.
Não era porém dia de S. João, mas sim o da festejada merenda grande, tão suspirado por todos os operarios que até Setembro gosam 2 horas de sesta.
Tavarede offerecia-nos mais um tom de quem estava em festa, do que a sua apparencia habitual de monotona pacatez.
Um grande cortejo de meninas e meninos, alumnos da nossa escola elementar, conduzindo cestos caprichosamente engrinaldados de flôres, percorreram muitas ruas da localidade. Á noite a exma. srª. D. Maria Amalia de Carvalho, sua intelligente professora, reuniu em sua casa muitas meninas suas discipulas e outras das suas relações, e ali estiveram em animado convivio até perto da meia noite.
Festas e mais festas!


Na Escola Primária da nossa terra, este dia era sempre de grande animação e alegria. Bem de ver que isto era naqueles recuados tempos. Vejamos uma nota sobre um desses dias da nossa escola. Foi em 1917.

Na escola mixta desta freguezia todos os anos se costuma festejar o dia da merenda grande. Fomos convidados pela digna professora, srª. D. Maria José M. Santos, a assistir a este grande ato d’alegria das creanças, que é, para elas, um dos melhores.
Assistimos, pois, à sua merenda grande, que foi revestida de bela animação das creanças, com os seus cestos lindamente enfeitados.
Antes da merenda viam-se na sala as creanças, de pé, formadas numa roda, cantando varias cantigas populares. Seguiu-se a merenda. Cada creança foi então buscar os seus cestos cobertos de flôres, sentando-se, e cada uma tirando deles o seu variado sortido de comida. Os sorrisos despendiam-se de todos os rostos. A chilreada daquele viveiro encantava toda a gente que o admirava. Após a refeição novas canções entoaram, dançando tambem alegremente, comunicando a sua alegria ao espirito dos assistentes.
Assim se passou na escola desta localidade a tarde da merenda grande. A petizada divertiu-se até fartar e a todos deixou a melhor recordação o seu aprasivel festival.
Daqui felicitamos a distinta professora srª. D. Maria José Martins Santos por ter realisado na sua escola uma festa cheia de alegria e disciplina.

Nesse dia era também costume, como acima se refere, fazer excursões às termas da Amieira e ao Bussaco. A esta última, durante muitos anos se manteve a tradição de ali ir a tuna do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense. Era uma oportunidade para a direcção desta colectividade retribuir a dedicação e a colaboração dos seus componentes. Infelizmente, em 1938 e sob a regência de Carlos Rodrigues dos Santos, foi a última vez. Ainda fizeram mais um ou dois serviços, na Chã, e a tuna calou-se para sempre.

Agora, passados tantos anos, resta a recordação. Acabou-se a espiga, acabou-se a merenda grande e acabou-se a famosa tuna de Tavarede.
Fotos: 1 - A espiga; 2 - Cortejo da Merenda Grande (de 'O Sonho do Cavador' em 1928; 3 - A tuna do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, com alguns acompanhantes, no Bussaco, em 1938.

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