sexta-feira, 8 de outubro de 2010

TEATRO - UMA OBRA QUE DIGNIFICA


Em Tavarede, modesta aldeia da beira,
ensina-se Teatro!


Para quem descreia da existência dum fogo sagrado, constante e generoso que lute através de todas as contigências e de todas as dificuldades por uma ideia digna e firme do verdadeiro sentido da Arte teatral, ponha os olhos e o cérebro em Tavarede, terra pobre, perdida na Beira pobre.
Esse agregado beirão tem uma associação cultural e recreativa, a Sociedade de Instrução Tavaredense, fundada em 1904 e desde essa data lançada na maravilhosa missão de cultivar e difundir a cultura dos seus próprios associados.
Chega a pasmar como é possível manter-se uma obra duma projecção tão elevada e tão nobre num meio insuficiente, cheio de asperezas da sua condição geográfica e humana.
Desde há trinta anos que um homem de tenacidade e têmpera fora do vulgar, José da Silva Ribeiro, mantém um grupo cénico, na referida Sociedade. Esse grupo, com um reportório vastíssimo do qual indicamos, como representativos exemplos do critério de selecção “A Nossa Casa” de George Mitchel, “Recompensa” e “Três Gerações” de Ramada Curto, “Envelhecer” de Marcelino Mesquita, os Autos de “Mofina Mendes”, da “Barca do Inferno”, “Pastoril Português” e “Todo o Mundo e Ninguém” de Gil Vicente, “Horizonte” de Manuel Frederico Pressler, “A Herança” de Henrique Lopes de Mendonça, esse Grupo, repetimos, vem cumprindo tenazmente e com sacrifícios de vária ordem o programa do seu entusiástico orientador. Como a aldeia é pequena bem poucas são as famílias que não têm representação no agrupamento de amadores. E assim a ideia nascida num momento inspirado de amor pelos outros foi-se invertendo no espírito daqueles trabalhadores do campo e das oficinas, naqueles rapazes e raparigas, operários e cavadores, modistas e empregados de escritório, carpinteiros, serralheiros e pedreiros que ao cair da noite, de corpo cansado pelo trabalho vão alimentar o espírito porque eles não se limitam a decorar as deixas dos seus “papéis” e recitá-los no momento oportuno com maior ou menor ênfase. Procura José da Silva Ribeiro que eles não sejam “fantoches para divertir o público”, como tão bem nos transmite no prefácio duma sua peça ali representada, mas que “tomem a consciência das respectivas personagens, dos sentimentos que lhes são alma, das ideias que as determinam, da época em que vivem, do ambiente em que se movem”. E assim, o grupo cénico tem uma actividade misturada de disciplina escolar e de prazer de passatempo. Suponhamos que foi escolhido para uma próxima apresentação o Auto da Barca do Inferno. À assembleia de actores amadores, ávida de conhecimentos, será exposta a obra vicentina, a época em que viveu o fundador do teatro português, a paisagem humana e social da corte de D. Manuel e de D. João III. Procurar-se-á na bibliografia correspondente o auxílio para uma melhor compreensão. E durante os ensaios os comparsas do auto não terão ùnicamente a preocupação de assimilar o contexto. Há sim uma posição inteligente e culta perante o problema que os seus lábios, os seus gestos e a sua expressão irão desenrolar no palco da aldeia.
Tudo isto é conseguido em tom de palestra, à medida que as peças vão sendo ensaiadas, sem ar de lição que decerto se tornaria insuportável para aqueles homens e mulheres de corpo cansado pelo trabalho mas de alma iluminada pela luz duma arte bem compreendida e ainda melhor ensinada.
De vez em quando são organizados programas de carácter acentuadamente cultural. Como exemplo, um programa já realizado com muito êxito e denominado “Noite do Teatro Português”: I Parte - teatro hierático - Auto da Barca do Inferno; II Parte - teatro romântico - 2º. acto da Morgadinha de Valflor; III Parte - teatro realista - 3º. acto de “Entre Giestas”.
Essas peças quando representadas no teatrinho da Sede obtêm receitas insignificantes que raramente pagam as despesas. E o Grupo, depois de apresentadas aos sócios, leva-as à Figueira da Foz procurando assim obter receitas que cubram as despesas de montagem.
É uma luta constante, uma luta nobre e velha de trinta anos.
A aldeia de Tavarede tem uma obra que dignifica não só os seus conterrâneos como o mundo teatral português. Uma Obra que se traduz não só em representações conscientes de verdadeiro Teatro como em palestras culturais e educativas feitas pelo director cénico.
Já foram abordados assuntos de interesse fundamental na cultura da arte de representar. As origens e evolução do Teatro (o teatro grego, em Roma, o drama religioso da Idade Média, a Renascença), o Teatro Português, as Trilogias Dramáticas (a trilogia ligada de Ésquilo - Oréstia, a Trilogia das Barcas de Gil Vicente, a Trilogia de O’Neill “Electra e os Fantasmas”) a Imortalidade do Teatro, tudo foi descrito em dissertações simples, acessíveis ao meio e sempre acolhidas com um entusiasmo que dá vontade de continuar, feliz e convicto de que quando se quer Teatro não é necessário muito dinheiro, muito público e muita cultura. É necessário, sim, defender e criar nos outros a convicção de que o espírito precisa de Teatro como alimento e não como pura distracção. E só assim se pode conseguir esse maravilhoso milagre teatral de Tavarede, lição puríssima e desassombrada da Arte pela Cultura dos povos.
Ainda há pouco no teatrinho da S.I.T. subiu à cena uma fantasia em três actos e 24 quadros de José da Silva Ribeiro, com música de António Simões, denominada “Chá de Limonete”. Essa fantasia que é a história singela da aldeia desde a sua fundação até aos nossos dias, foi montada a preceito, com cenários e guarda-roupa inteiramente novos, num esforço gigantesco que testemunha a vontade indómita e o admirável caminho seguido pelos amadores de Tavarede. Num livro de excelente apresentação gráfica e fotográfica do acontecimento, tivemos o prazer de constatar até que ponto o amor pelas coisas teatrais está espalhado naquele rincão da Beira. E comparando com o que por cá se passa, fazendo a proporção entre as centenas de Tavarede e os muito milhares de Lisboa fica-nos no cérebro o clarão duma Obra que dignifica, reconhecida não só pelo seu público como por diversas associações humanitárias por ela protegidas em diversas representações de beneficência.
E nós, como verdadeiros amantes do verdadeiro Teatro, daqui dizemos, orgulhosos em ajudar a transmitir a sua mensagem: operários e modistas, cavadores e ceifeiras de Tavarede, homens e mulheres dessa aldeia, reduto duma Arte Eterna, obrigado!


Jornal Magazine da Mulher - Novembro de 1951

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