quinta-feira, 19 de maio de 2011

Arte do Povo e para o Povo

Entre os muitos deslumbramentos que em mim causou a viagem aos países nórdicos, ocupa um lugar destacado a protecção do Estado e das comunas ao teatro do povo, dando à expressão o seu verdadeiro significado – artistas do povo representando para o povo. Particularmente na Finlândia, onde me apercebi com mais detalhe do problema, essa protecção ultrapassa o dever do estado para atingir as culminancias duma verdadeira consagração nacional. São às dezenas os grupos de amadores que, desde as regiões polares até Helsínquia, se dedicam, no intervalo das suas vidas de trabalho afadigado e operoso, a fornecer ao público o precioso alimento espiritual de que, só o teatro, na sua simplicidade e na sua estreita comunhão, é capaz. Não posso, é claro, pronunciar-me sobre o valimento desse teatro, pelo desconhecimento completo da língua arrevezada e difícil, mas o que posso garantir é que ouvi a artistas finlandeses as melhores referências e a afirmação de que são esses núcleos os permanentes mantenedores do prestígio dum espírito sem o qual o teatro acaba por estiolar-se! E é precisamente desses núcleos que saem os grandes artistas profissionais, para os quais, segundo parece, se não exige um exame declamatório e enfatuado…


Por aquilo que ouvi, não é possível fracassar na Finlândia uma iniciativa deste género, a não ser por incapacidade congénita dos amadores, pois as facilidades económicas são tão grandes e o acesso aos teatros tão acentuado que, agrupados os artistas e expostas as suas pretensões, o ambiente oficial ou comunal e a compreensão pública se manifestam, não no campo das promessas, mas sim no das certezas e realidades.


Parece-me ser este o caminho e esta a única solução. Se assim sucedesse, entre nós, é natural que o Teatro não apresentasse o aspecto confrangedor que o arrasta pelo Parque Mayer ou que as iniciativas altas e honradas de alguns homens sérios morressem desfalecidas e sem protecção. Isto no que respeita à compreensão oficial do papel dos pequenos núcleos porque, como é óbvio, o que se passa com os grupos profissionais excede todas as críticas.


Mas vem isto a propósito de dois acontecimentos ocorridos no nosso meio artístico, para os quais chamo a atenção dos interessados e dos próprios poderes políticos.


O primeiro é do conhecimento geral:
A grandeza do Teatro dos Estudantes de Coimbra, dirigidos pelo saber e pelo sacrifício do professor Paulo Quintela, cuja fama ultrapassa as fronteiras e constitui grande jubilo para todos os portugueses, através da atmosfera de entusiasmo que o envolveu na sua digressão pela Alemanha, Itália e Espanha, sobretudo nos dois primeiros países, em que a cultura teatral faz parte integrante da cultura geral.


O segundo é a arte excepcional do grupo de Tavarede, cujo “Frei Luiz de Sousa”, recentemente representado em Leiria, demonstra a que altura pode chegar a massa anónima do povo quando iluminada pelo trabalho persistente e pela humana cultura dum José Ribeiro.


No primeiro caso há que contar, sem dúvida, com a preparação dos jovens artistas, estudantes universitários, conhecedores do ambiente e da literatura, ou, pelo menos, acessíveis à compreensão dos temas e dos personagens. É um facto a contar que não desmerece do valor e da beleza desse agrupamento de “elite”.


Mas o segundo?


Haverá melhor expressão de riqueza popular do que esses artistas proletários, debruçados dia a dia, nos trabalhos duros da profissão e entregues nos longos serões à “compreensão” dos seus papéis, sem cultura, alguns analfabetos e outros sabendo ler mas ilaqueados pelas dificuldades intelectuais duma rápida assimilação?


Mesmo que tenham à sua frente um homem invulgar como José Ribeiro, seu mestre e companheiro, como desconhecer o esforço hercúleo dessa massa erguendo-se à contemplação da beleza e sabendo-a transmitir de forma a causar inveja a alguns filiados no Sindicato profissional?


Só quem, como nós, assistiu à representação do “Frei Luiz de Sousa” pode avaliar da emoção, da verdade e da sinceridade, que esses proletários-artistas põem ao serviço duma arte, que eles tanto sentem nos recessos das suas almas de eleição, embora tocados por uma simplicidade comovedora e aliciante.


Por aqui se aquilata a necessidade de proteger esses núcleos, tal como se pratica nos países do norte europeu. Protecção que terá de ser eficiente no aspecto das facilidades oficiais, na isenção de taxas e sobretaxas, no acesso aos teatros, na oferta de literatura especializada e na abertura de pequenos anfiteatros, onde os responsáveis e os esclarecidos exponham, em conversa fácil, os problemas da arte teatral.


O mesmo principio deverá ser aplicado a todas as manifestações de arte do povo, sejam eles os orfeãos magníficos que possuímos e que vivem uma hora difícil e agónica, as orquestras populares e as manifestações plásticas dos nossos artistas populares e desconhecidos.


A “carolice” não pode fazer milagres e não é justo exigir-se das bolsas particulares e do suor não compensado de meia dúzia, todo um trabalho em beneficio da Nação e, portanto, de todos nós.


É esta uma das modalidades duma política do espírito, a que daríamos a nossa adesão se alguém se lembrasse de a efectivar.


Quando será? (República - 1952.11.13)

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