quinta-feira, 29 de setembro de 2011

COMEMORAÇÕES GARRETTIANAS

2º. acto de 'Frei Luís de Sousa', de Almeida Garrett - 1951


Temos a honra de publicar a notável alocução proferida pelo sr. dr. Calazans no passado dia 30 de Outubro, ao apresentar aos Marinhenses o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense na sessão comemorativa do Centenário da Morte de Garrett.


“Minhas Senhoras e meus Senhores:


Há 50 anos, numa humilde aldeia do concelho da Figueira da Foz, Tavarede, fundou-se a Sociedade de Instrução Tavaredense, com o fim de promover a instrução e educação das classes populares, através duma escola primária nocturna para adultos e menores, da biblioteca e do teatro.


Os homens que tiveram essa ideia e a puseram em prática, eram todos de condição modesta: dois pedreiros, um torneiro, um serralheiro, um fogueiro, um ferreiro, um carpinteiro, um cantoneiro, um comerciante e três cavadores. No entanto apesar da sua modéstia acenderam uma chama que não mais se extinguiu.


Ao seu calor têm-se aquecido muitos desprotegidos da sorte, beneficiários das receitas dos espectáculos dados pelo Grupo Cénico da referida Sociedade, em várias terras do país; no começo deste ano atingiam o total de noventa e oito. À sua luz têm-se iluminado muitos espíritos quer pelos ensinamentos recebidos quer pelo prazer proporcionado pelas suas magnificas representações.


Como tem sido possível em tão diminuta população, alimentar uma chama tão alta e tão viva, a arder há cinquenta anos ininterruptos, sem se consumir? Que alfobre de artistas há nessa pequena aldeia para em tão longo espaço de tempo se terem podido renovar os quadros e manter actividades intelectuais tão dignas de elogio?


Como é estranha no nosso meio onde aos entusiasmos delirantes se sucedem a breve trecho, a indiferença e o desânimo, esta continuidade que dura há meio século, dum penoso e abnegado esforço! E isto sem qualquer esperança de lucro material – é esse um dos pontos de honra da Sociedade – apenas por dedicação, por civismo.


Admirável povo o nosso. Vejo-me diante dum grupo de pessoas humildes, os olhos marejados de lágrimas. Tinham-nos tirado aos meus e a mim, cobertos de sangue, de dentro dum automóvel desfeito. Julgaram que não escapávamos, e ali estávamos diante deles, a agradecer-lhes o bem que nos tinham feito, os cuidados que nos tinham dispensado.


Quis gratificá-los, não para pagar-lhes o que não tem preço mas para que eles pudessem festejat o que julgavam ujma ressurreição. Recusaram, todos recusaram, e um teve esta frase que só um português poderia pronunciar: Não insista, Senhor, não nos estrague a nossa alegria.


Sempre amei o povo mas desde então – e já passaram bastantes anos – enterneço-me sempre que penso na nossa gente, tão pobre e tão boa, capaz dos feitos mais heróicos - a nossa História aí está a atestá-lo – e das mais sublimes dedicações.


A população de Tavarede, representada hoje junto de nós pelo Grupo Cénico da sua Sociedade, na população da Marinha Grande, terra de trabalhadores, herdeira da tradição dos Stephens que há quase dois séculos construíram um teatro que este substituiu para educar e distrair os operários da sua Fábrica, saúdo o povo de Portugal.


Ao Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, que há meses nos visitou, sucede-se o Grupo de Tavarede.


Os primeiros trouxeram-nos Gil Vicente, o rude plebeu do século XVI, que em linguagem mordaz causticou os vícios e os desmandos dos seus contemporâneos, de todas as categorias, desde o sapateiro até ao Papa. Os últimos trazem-nos Garrett, o árbitro das elegâncias do seu tempo, espírito requintado, aristocrático no verdadeiro sentido da palavra.


Parece um paradoxo mas não é. Aos dois Grupos, em qualquer peça que representem, liga-os a arte, sem a qual não há civilização, a cultura. Ambos estão ao serviço do povo.


Chefia um dos Grupos o Professor Catedrático, Doutor Paulo Quintela; o outro tem a dirigi-lo o senhor José da Silva Ribeiro, um autêntico intelectual.


Não sei se Vossas Excelências conhecem o célebre poema do grande escritor inglês Kipling: “Se”.


Se podes conservar a serenidade quando todos à tua volta
A estão perdendo e censurando-te por isso;
Se podes confiar em ti próprio quando todos duvidam de ti,
Mas aceitando, também, a sua dúvida;
Se podes esperar, sem que a demora te canse;
Ou, sendo caluniado, não recorrer a mentiras,
Ou, sendo odiado, não corresponder com ódio,
E, contudo, não parecer bom demais, nem presumir de sábio;
……………………
…………………….
Se podes falar com a multidão e manter a tua virtude,
Ou privar com Reis – sem deixar de ser simples;
Se nem inimigos nem amigos queridos conseguem magoar-te;
Se todos os homens contam contigo, mas nenhum mais do que outro;
Se podes preencher o implacável minuto
Com o valor de sessenta segundos de caminho percorrido,
É tua a Terra e tudo o que ela contém
E – o que é mais – serás um Homem, meu filho!


Assim é o senhor José da Silva Ribeiro. Sofreu contrariedades sem conta, viu o curso da sua vida modificado, frustradas as suas mais legítimas aspirações. Não só não desanimou mas, facto ainda mais raro, conseguiu afastar do seu espírito, o corrosivo representado por esses dois males, que tanto afligem a humanidade: a intolerância e o ódio.


Firme e sereno, tem-se mantido fiel a si próprio e por isso, amigos e adversários o admiram e respeitam.


O brilho, o alto nível das representações do Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, a ele, à sua sólida cultura, à sua devoção se devem em grande parte.


Manifesto-lhe publicamente o meu apreço e dirijo-lhe e aos seus colaboradores os meus sinceros agradecimentos pelo prazer espiritual que a convite do Sport Operário Marinhense nos vão proporcionar.


Na inauguração deste Teatro recordei o que Edison disse a um grupo de industriais que tinham ido agradecer-lhe os serviços que ao seu génio devia o cinema: Lembrai-vos sempre de que o vosso dever é procurar educar o povo e não corrompê-lo.


Que ao fazer-se o balanço da minha acção como director deste Teatro, me sejam levadas em conta as representações como a desta noite, para compensar, se isso é possível, tantas fitas corruptoras que – ai de mim! – por aqui têm passado.



(Região de Leiria - 18.11.1954)

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