sábado, 8 de outubro de 2011

5 de Outubro - Dia da República

1977.10.05 - JOSÉ SILVA RIBEIRO – E 5 DE OUTUBRO

Não podemos comemorar o 5 de Outubro sem evocar a acção nobilíssima dos homens que durante mais de duas décadas dedicadamente fizeram, com inteligência e intemerata coragem, a propaganda do ideal republicano, derrubaram a Monarquia e implantaram a República democrática. A queda do anterior regime não foi o resultado feliz dum golpe de poucos militares que estiveram na Rotunda com Machado dos Santos e alguns jovens cadetes da Escola Militar – entre eles os dois heróis Humberto de Ataíde e Viriato de Lacerda, que iriam morrer em África na guerra contra os alemães. Não. A Monarquia estava já condenada na consciência da nação, despertada e informada pela pregação de verdadeiros apóstolos – homens dos mais ilustres nas letras, nas artes, nas ciências, no professorado, em todas as camadas sociais, cujos nomes vivem na memória do Povo e se recordam com admiração e reconhecimento. “Monarquia sem monárquicos”, caduca e afogada em escândalos – escândalos que iam fundo e subiam alto, como o dos adiantamentos, em que mergulharam os Ministros e o próprio Rei – a Monarquia já não tinha raízes capazes de encontrarem seiva na alma do Povo português.


Na hora decisiva a Monarquia não teve quem a defendesse!


A República firmou-se definitivamente, identificou-se com a Pátria. Já não era possível entender uma sem a outra. A nova Inquisição de quase meio século aviltou os principios basilares, aplicando os antídotos da Polícia e da Censura, sem os quais lhe era impossível viver; mas conservou o rótulo, sem coragem para ir mais longe, mantendo no papel timbrado o nome de República, e até se chamou – Democracia... “orgânica”.


Terminada a revolução, os tribunos da propaganda iam ser governantes. A tarefa enorme a que se lançaram não se realizou sem falhas e sem erros – o que não era surpreendente. Mas fizeram-no com honra, coragem e dignidade, deixando uma obra de que os homens de 1910 podem orgulhar-se. Com inteligência, firmeza e autêntico patriotismo, enfrentaram e venceram ataques e traições dos inimigos, que tudo tentaram para derrubar a República. Vem a propósito recordar o que escreveu Cunha Leal em 7 de Outubro de 1958:


“ Cair-se em erros nos tateamentos iniciais dos governantes improvisados é humano e natural. Por outro lado quando a gente se ponha a considerar que as reacões monárquicas, posteriores à proclamação da República, atingiram formas agudas e perturbadoras da vida portuguesa, cristalizadas, em certa altura, em incursões de bandos armados com bases no país vizinho e a elas retornando após o seu fracasso; quando se não perca de vista que logo a seguir a este fenómeno incursionista, sem quase dar tempo ao novo regime para respirar, o País se viu envolvido numa catástrofe bélica de proporções desmedidas, para salvaguarda da integridade do seu império ultramarino; quando se atente ainda nas complicações originadas, de modo geral, no ocidente europeu pela reconversão da economia de guerra para a de paz, com a intromissão entre nós da intriga reaccionária para agravamento da situação; quando se examinem todos estes acontecimentos e precalços não com olhos de sectário interessado, mas sim com olhos de observador sereno e imparcial, então, forçosamente, os juízos críticos sobre a acção dos governantes da república democrática deixam de ser depreciativos para assumirem modalidades compreensivas. Chega-se mesmo, sem favor, a reputar digno dos maiores encómios o período administrativo de Afonso Costa, com o seu indiscutível “superavit” orçamental e a encarar com respeito o esforço que, no limiar do advento de “o 28 de Maio”, quase nos reconduzira ao equilíbrio financeiro, como condição para, então, se iniciarem com segurança rasgados voos no sentido de se dar satisfação aos anseios de intensificação económica e de acentuada justiça distributiva do produto nacional, o que fora o mais alto objectivo da revolução outubrina”.


Não pode negar-se que a acção governativa da República teve de ser realizada em circunstâncias dificílimas nos longos 4 anos de Grande Guerra. E os governantes desse tempo honraram-se servindo a Nação, levando a cabo, pela mão do General Norton de Matos, o chamado “Milagre de Tancos”, isto é, a intervenção de Portugal na Guerra ao lado dos Aliados. Norton de Matos foi o primeiro Alto Comissário de Angola, onde realizou obra notabilíssima, numa orientação que faria de Angola um novo Brasil – independente mas português! Então ainda não se considerava crime dos portugueses ter dado ao Mar-das-Trevas e construir cidades e levar civilização e progresso às terras africanas. Bernardino Machado, António José de Almeida, Afonso Costa, Norton de Matos e os seus companheiros no Governo – homens da República de 1910 – preservaram de cobiças estranhas as Províncias Ultramarinas portuguesas, que continuaram a ser portuguesas. Provincias ultramarinas – foi assim que a República designou os territórios ultramarinos. O Pacto Colonial apareceu depois, foi criação do Salazarismo. Assinada a paz, Afonso Costa, o grande e prestigioso estadista da jovem República Portuguesa era levado à presidência da Sociedade das Nações.


Todos nos lembramos do exemplo sem par de generosidade e de beleza cívica oferecida pelo Povo de Lisboa durante a revolução em 4 e 5 de Outubro e nos dias naturalmente conturbados que se lhe seguiriam.


Na primeira proclamação do Governo Provisório ao Povo de Lisboa, em 7 de Outubro, recomendava-se:


“A atitude do Povo tem sido admirável de serenidade e cordura. Após o acto revolucionário, em que ele foi duma bravura antiga, sucedeu o entusiasmo da vitória, em que ele se tem comportado como um triunfador generoso, que fez da nobreza de sentimentos o mais belo padrão da sua glória legendária. Mas é preciso regressar ao trabalho fecundo, que será, com uma moralidade severa, a base da nossa regeneração.


Por isso o Governo Provisório convida todos os grupos revolucionários e forças populares não militarizadas a entregarem as suas armas às comissões paroquiais.


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O Governo Provisório da República confia no bom senso do povo, no seu patriotismo e na sua dedicação à República. Por isso o exorta a que continue a ser generoso e cordato, e que respeite a vida e fazenda alheias, a que não persiga ninguém, a que dê enfim mais um alto e nobre exemplo da sua envergadura moral.


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Cidadãos! O futuro da Pátria está nas vossas mãos. Não o zelar com o carinho que lhe devemos seria mais que perdê-lo, porque seria desonrá-lo. Ergamo-lo bem alto para que de todas as partes do mundo ele seja visto, e os países civilizados possam dizer, referindo-se a Portugal: eis um povo antigo pelas tradições heróicas, mas que pela serenidade, pelo amor ao trabalho e pela dignidade cívica é tão moderno que vai na dianteira de todos os povos”.


E o povo ouviu e logo deu cumprimento às determinações do Governo Provisório. Não houve ataques à propriedade privada, não houve assaltos a Bancos, e viram-se populares, de espingarda ao ombro, a guardar os Bancos, edifícios públicos e as residências de figuras em destaque no regime deposto; e as armas que tinham servido aos civis na luta armada, logo foram entregues. Estavam em boas mãos...


Que queriam os homens de 1910? República e Democracia. Governo pela República, vida social em democracia. Democracia significa Liberdade para todos, para todos os mesmos direitos e os mesmos deveres, sempre em obediência à lei legítima, que todos terão de respeitar – todos: monárquicos ou republicanos, de esquerda ou da direita. Assim entendemos em 1910, não entendemos hoje de outra maneira.


Acode-nos ao espírito a figura do nosso ilustre patrício, o Doutor Joaquim de Carvalho, cujo perfil de intelectual, de professor e de cidadão democrata nos é dado por Jaime Cortesão num breve depoimento sobre a personalidade deste grande Homem-de-1910:


“Sem desdouro para outros ilustres cidadãos seus pares, creio que, no último meio século, ninguém em Portugal melhor do que Joaquim de Carvalho, encarnou e exprimiu o valor da Liberdade como condição essencial da dignidade humana, e a sua função criadora na história do povo português. Os seus trabalhos sobre a história do liberalismo em Portugal são pela honradez, a erudição, a interpretação clarividente e o vigor do estilo, obras-primas dignas dum Herculano. A sua compreensão austera e militante da Liberdade como direito medular do homem, fonte de inteireza moral, de tolerância e respeito pelos ideais políticos alheios, dava-lhe a dupla mestria do saber e da conduta para aquela espécie de trabalhos.


Quando da sua estadia no Brasil, onde eficaz e nobremente representou a cultura e a história da cultura nacional, alguns dos seus admiradores e amigos portugueses do Rio de Janeiro ofereceram-lhe um almoço.


Durante o repasto e quando todos falavam com preocupação do futuro político de Portugal, um dos convivas e dos mais ilustres, formulou votos em que transpareciam propósitos apaixonados de vindicta contra os adversários. Tratava-se de uma das pessoas que se associara mais calorosamente à homenagem. Vi então Joaquim de Carvalho erguer-se e com indignada violência defender, em nome da liberdade de pensamento, o respeito pelos adversários ideológicos. Inflamara-se. A sua voz tremia. Acabava de proferir uma das suas melhores lições. E eu vi na minha frente, em toda a sua grandeza, mais e melhor do que o prosélito e o Mestre, o Apóstolo”.


Evoquemos, sim, os fundadores da República nesta hora comemorativa. E não sejamos desdenhosos para o seu romantismo – timbre moral, título de honra que é a sua glória e os levou a merecerem o epitáfio que Almeida Garrett propôs para lápide sepulcral do grande português e figueirense insigne Manuel Fernandes Tomás – “Salvou a Pátria e MORREU POBRE”.


Abramos a alma para receber e guardar nela e fazê-lo frutificar, o apelo dos Homens-de-1910: vamos fazer de Portugal um Povo moderno, aceitando as lições e utilizando os progressos morais e materiais verificados no decurso de 67 anos; mas com o propósito de estabelecer na nossa Pátria a Democracia, que é Liberdade e é Virtude – e foi o ideal dos fundadores da República.


(Mar Alto)

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