sábado, 29 de dezembro de 2012

O Associativismo na Terra do Limonete - 4


As primeiras notas do Associativismo


 Terceiro Conde de Tavarede, fundador do Teatro Duque de Saldanha
  
         O ano de 1865 é aquele que, posteriormente, Ernesto Tomás nos descreve a visita que fez a Tavarede. É mais ou menos a data em que se iniciaram, na Figueira da Foz, publicações de jornais locais, em que começam a surgir notícias dos seus correspondentes nas diversas freguesias. Nota-se, ao longo dos anos, que, relativamente à nossa terra, ocasiões há em que abundam as notas enviadas pelos correspondentes locais, alternando com outros períodos em que escasseiam ou não há mesmo quaisquer novidades da nossa terra. Mesmo a maioria das locais publicadas, embora tenham algum interesse para a história próximo passada, pouco se referem ao assunto que estamos a tratar.

         Mas, escasseando-nos as notícias da imprensa, vamos ainda recorrer a Ernesto Tomás para mais umas notas sobre o teatro na nossa aldeia que, no período entre 1865/1868, trazia à nossa terra “uma troupe de rapazes d’aqui (Figueira), que até nas mais caliginosas noutes de inverno, tinha a coragem de ir a Tavarede, a um teatro ou a um presépio”. E aproveitemos para ler a descrição que nos deixou de um espectáculo a que assistiu:

         Estava vae não vae a levantar o panno. Os rapazes da Figueira, tendo invadido o palco, graças á bonhomia da companhia dramatica, deixem lhe chamar assim, trataram de collocar-se á primeira voz nos papeis de contra-regra, carpinteiros de urdimento, etc., etc.,. Os que haviam de entrar em scena estavam a estas horas reunidos em um telheiro que a casa do theatro tinha ligado pelo lado de traz. Estavam á beira do supplicio, de umas rugas feitas a ferro quente no rosto, que, depois, era afogueado mediante a despeza d’uma forte pintura a tinta nova. Rompia o espectaculo com uma comedia que se bem nos recorda se intitulava - Os dois rivaes - que nos dava em exhibição no principio um velho vegete, enamorado d’uma creada, fresca e rosada, que tentava a carne mais aphatica.

         O papel de velho havia sido distribuido a Jozé do Ignacio, de quem fallámos ha pouco, e que, appareceu em scena risonho a mostrar-se á rapaziada da Figueira. Ainda o panno não havia subido e na plateia o fóra, fóra, fóra, ribombava atroador soltado por dezenas de gargantas tonificadas pelo bom sol e bom ar dos campos. De subito ouviu-se uma voz: - Panno acima! A rapaziada da Figueira pespegou com o Jozé do Ignacio dentro de um caixão (cousa da peça) o qual, depois iria subindo, puxado pela creada namorada, que assim o subtrahia ás vistas dos amos que eram peticegos.

         Mettido no esconderijo e sem mais preambulos, panno acima, elle ia subindo, subindo, e o caixão dando balanços desencontrados, fazia com que o Ignacio pensasse mais do que uma vez que a comedia descambaria em tragedia. Gargalhadas e mais gargalhadas da plateia, ditos, assobios - um inferno; - e lá dentro clamava voz em grito: - panno abaixo! panno abaixo! panno abaixo! Caiu o panno. Sabidas as contas, todo este desastre scenico não foi mais do que uma partida que antes havia sido combinada entre a troupe da Figueira.

         Efectivamente, em todos os jornais figueirenses publicados e a que tivemos acesso, a primeira notícia sobre associativismo encontrada, tem a data de 21 de Outubro de 1877, no jornal “Correspondência da Figueira”, e refere que “Em Tavarede houve ontem à noite uma récita dada por alguns curiosos da localidade. Subiu à cena o “Último Acto”, do sr. Camilo Castelo Branco, e uma comédia”. Nada mais, nem sequer o local ou a associação que promoveu o espectáculo.

         Só cerca de ano e meio depois encontramos nova notícia sobre o tema. É no mesmo jornal, em Fevereiro de 1879 e diz: “No próximo sábado, dia 15, duas sociedades de curiosos da localidade tencionam dar, cada uma em seu respectivo soi-disant teatro, duas récitas. Uma das sociedades, a sociedade antiga, leva à cena o drama em 3 actos “A escravatura branca”; a outra, a sociedade nova, representa o drama em dois actos intitulado “Cravos e Rosas”, a comédia em um acto “Mulher por duas horas” e a comédia “Mulher que perde as ligas” também num acto.

         Nós aplaudimos sinceramente esta ideia dalguns rapazes daquela localidade. Sempre é melhor ouvir a declamação de uma peça de teatro por um actor gauché e o desempenho comprometido de uma actriz de aldeia, de que dizer bisbilhotices por casas alheias e a gastar a dignidade por tabernas imundas. Honra pois àquela gente de Tavarede que, apesar de não conhecerem as doces caturras da bisca-sueca e as impressões melancólicas da leitura de um romance reles, nem por isso tentam passar menos sensaboronamente estas longas e tristes noites de Inverno.

         Em todo o caso, sempre rogamos ao digníssimo administrador deste concelho para que dê as providências necessárias para se não dar, durante as representações, algum conflito desagradável entre os curiosos da plateia dos referidos teatros”.

         Esta nota sugere-nos dois comentários. Primeiro, não sabemos qual era a sociedade antiga ou a sociedade nova.  Inclinamo-nos, embora sem qualquer confirmação, para que a sociedade antiga fosse na Casa do Terreiro e a sociedade nova, no Palácio dos Condes de Tavarede. No entanto, também não excluímos a hipótese de uma delas estar instalada no velho teatrinho que Joaquim Águas construiu na sua casa na Rua Direita. Segundo, a notícia dá a entender a possibilidade de desacatos entre os assistentes. Seriam rivalidades artísticas ou associativas? Não nos podemos esquecer que, poucos anos depois, o Governador Civil do distrito mandou fechar uma “associação” em Tavarede, devido às constantes desordens que nela se verificavam.

sábado, 22 de dezembro de 2012

O Associativismo em Tavarede - 3


As Sociedades Dramáticas

 Joaquim Alves Fernandes Águas

         Estamos situados no ano de 1865. É interessante recordar que, naquela época, o Associativismo era oficialmente regulado pelo Código Penal de 1852, no qual o artigo 282º. estabelecia: “Toda a associação de mais de 20 pessoas, ainda mesmo divididas em secções de menor número, que, sem preceder autorização do governo com as condições que ele julgar convenientes, se reunir para tratar de assuntos religiosos, políticos, literários ou de qualquer outra natureza, será dissolvida; e os que a dirigirem ou administrarem serão punidos com prisão de um mês a seis meses. Os outros membros serão punidos com prisão até um mês”.

         Ora, com tais disposições em vigor, seria possível existirem, em Tavarede, “sociedades dramáticas”, legalmente constituídas e que aqui “vegetavam como tortulhos? A resposta só poderá ser negativa. Tratar-se-ia, isso sim, de pequenas “sociedades familiares”, que se reuniam nalgumas casas, especialmente nas de famílias mais abastadas, para passarem os seus serões, principalmente nas grandes noites do Outono e do Inverno e que, tendo adquirido o gosto pelo teatro e pela música, aproveitavam os seus tempos de descanso para conviverem nos ensaios, procurando, ao mesmo tempo, instruírem-se e divertirem-se, instruindo e divertindo os seus conterrâneos que assistiam aos espectáculos que apresentavam.

         Mestre José Ribeiro, no seu livro “50 Anos ao Serviço do Povo”, publicado aquando as “Bodas de Ouro” da Sociedade de Instrução Tavaredense, a páginas 22, escreve: “Pudemos apurar que funcionaram teatros, onde se representaram peças que fizeram correr rios de lágrimas e provocaram indigestões de gargalhadas, nos seguintes locais: “na Casa do Paço, do lado do caminho para a Figueira; depois, na mesma casa, no teatro ali mandado construir pelo último Conde de Tavarede; na casa que foi de Romana Cruz, na Rua Direita, à entrada da povoação; na casa onde hoje vivem, a meio da Rua Direita, os herdeiros de Martinho Correia; na casa chamada do Ferreira, logo adiante mas do lado oposto (casa que pertenceu a António Cordeiro); na de Joaquim Águas, pai do velho capitão José Joaquim Alves Fernandes Águas, em frente do anterior, prédio em que mais tarde esteve o Grupo Musical Tavaredense; na casa, também na Rua Direita, que foi de João da Silva Cascão; e na então chamada Casa de Ourão, no Largo do Terreiro, o mesmo edifício que João José da Costa mandou transformar no teatro hoje propriedade e sede da Sociedade de Instrução Tavaredense”.

         É credível que mais algumas houvessem. Recordemos que Aníbal Cruz, tavaredense estudioso da história da sua terra e jornalista, deixou escrita a informação de que sua avó lhe contava que, no tempo dela, chegaram a representar-se em Tavarede, em simultâneo e sempre com casa cheia, seis Presépios!

         Agora, é a ocasião de explicar o que eram essas associações e as salas de teatro. Vamos dar a palavra, mais uma vez, a Ernesto Tomás:
        
“… A plateia, que para aproveitamento de maior número de espectadores havia sido construída em forma de palanque, era engendrada por umas tábuas manhosamente pregadas nuns cunhos de madeira e estes, por sua vez, da mesma forma ligados a uns postes de madeira inclinados contra a parede.

         O pano de boca, qualquer colcha, de chita, de padrão em labirinto vermelho. A iluminação fazia-se por meio das clássicas velas de sebo espetadas em palmatórias de pau. Ria-se, vozeava-se e fumava-se na plateia, com a sem-cerimónia de ajuntamento numa feira.          De vez em quando, um dito picaresco, saído de alguns dos espectadores, ia provocar a hilaridade ruidosa dos mais sérios, e tudo ria desalmadamente, sem respeito pelo cabo d’ordes, o António José, que assistia àquela inferneira aprumando desmesuradamente a sua autoridade tão sobranceira como a sua figura, de pouco menos de três côvados de alto.

         Lá dentro, no palco, desenvolvia-se um vai e vem, entretido pela família dos actores, das actrizes e pelos intrusos, bem capaz de causar vertigens às constituições menos dadas à sensibilidade. Uma flauta que nos produzia nos nervos arranhos de gato, conjuntamente com um violão despertando dobre a finados, e uma viola, gemendo sob uma unha afeita à enxada, constituía por inteiro o que então se apelidava de a Roquestra…”.

         Esta casa de teatro estava instalada na acima descrita “Casa do Ferreira”, actualmente propriedade do nosso amigo Manuel Lontro, e a descrição refere-se a um espectáculo no ano de 1865. A sala de teatro, ou associação dramática, já era, no entanto, mais antiga.

         Mas nós temos também mais informações sobre aqueles anos. Por exemplo, no ano anterior, ou seja em 1864, Joaquim Alves Fernandes Águas, fundador da conhecida Casa Águas, na Figueira da Foz, ainda residia com sua família em Tavarede, pois só se mudaram da nossa terra para a Figueira dois ou três anos depois. Exerceu vários cargos administrativos e era muito respeitado por todos os seus conterrâneos. Amigo de divertir-se, um “Presépio” (costume velho em Tavarede) era o cúmulo de seus divertimentos. “Em uma das casas que já apontámos, lá instalou um teatrinho seu, cerca do ano de 1864, em que ele, filhos e filhas entravam, representando, e o que é melhor é que mulheres representavam de homens e vice-versa”. Isto confirma a nossa opinião de que as tais sociedades dramáticas eram reuniões familiares. Como curiosidade, recordemos uma nota escrita sobre um dos espectáculos ali dados naquela época.
   
“… A costumada troupe de rapazes da Figueira estava no seu posto de espectador. Alguns rapazes dela ocupavam-se em ajudar, tocando numa orquestra adrede arranjada para satisfazer às exigências do espectáculo.    Na casa velha, vestiam-se as figuras e preparava-se o mise-en-scéne; na casa nova, havia o palco e a plateia, e a comunicação duma para outra era feita por uma porta que dava para o fundo do palco. Havia-se esgotado o reportório do presepe e ia entrar em cena a comédia “O marido vítima das modas”.

A propósito do “Presépio”, tradição tão antiga em Tavarede e na Figueira, encontrámos uma notícia, sobre esta peça, no jornal ‘O Conimbricence’, de Janeiro de 1867, a propósito de representações na Figueira, referindo-se a nota especialmente a uma representação num teatro sito ao Pinhal das Águas: … Nesta época do Natal nota-se sempre nesta vila um certo bulício e entusiasmo com os presépios, que ordinariamente aqui é costume fazerem-se em número de um, dois, três ou mais, conforme os rapazes e raparigas, que para tal fim se agrupam em maior ou menos número, tendo sempre em todas as noites em que se representam as variadas cenas pastoris, alegóricas ao nascimento de Cristo, grande concorrência de espectadores; pena é que os diferentes papéis escritos em verso já completamente estropiado, sem metrificação, e com alguns até em linguagem chocarreira, e pouco decentes, não sejam substituidos por outros correctos, ou mesmo por uma prosa bem escrita, pois que o acto histórico-religioso exigia e devia tornar-se mais decente e respeitoso; tempo virá e breve, talvez, em que isso se consiga

         Os rapazes da Figueira encarregaram-se da mudança do cenário, mas, para fazerem uma partida ao velho Águas e rirem-se no fim, colocaram os bastidores em sentido inverso, isto é, de pernas para o ar.      Tudo pronto… Pano acima…

         Ninguém havia reparado no desarranjo do cenário, mas o velho Águas, que, sentado na plateia, acompanhava passo a passo as fases do espectáculo, tendo reparado gritou: - Vá o pano abaixo!... pano abaixo!... E foi.

         Dirigiu-se lá dentro à casa velha, zangado, fulo de raiva, e fez-nos uma apeporação tão apimentada que não era para rir, faltando pouco para que todos os rapazes da Figueira fossem postos no meio da rua. Mantivemo-nos, contudo, um pouco mais sérios, rectificando no nosso espírito a ideia que formávamos do nosso velho Águas: de que ele estava sempre pronto a aturar-nos rapaziadas e a rir-se delas.       Daí por diante teríamos de pensar que, dentro do seu teatrinho, nos deveríamos portar com o aprumo da seriedade, com toda a correcção de espectador gommé, aliás… rua!”.
        
Já temos, portanto, conhecimento do que eram as associações dramáticas em Tavarede, apercebendo-nos que era o teatro que tinha maior preferência da população, embora a música também tivesse o início da sua prática, com a participação de figueirenses, embora ainda muito rudimentar.

         Acompanhemos agora a evolução do associativismo em Tavarede a partir daquelas datas.

sábado, 15 de dezembro de 2012

O Associativismo na Terra do Limonete - 2



Os princípios do associativismo
  
         Vamos, agora, tentar explicar as razões que nos levam a apontar o início do associativismo na nossa terra para aqueles recuados tempos. Como todos nos recordamos, Tavarede foi palco, durante cerca de dois séculos e meio, de violentas quezílias entre o Cabido da Sé de Coimbra, a quem o Rei D. Sancho I fizera doação do Couto de S. Martinho de Tavarede, no ano de 1191, e a poderosa família Quadros, aqui radicada desde o ano de 1522, quando D. João III nomeou António Fernandes de Quadros Juiz das Sisas de Tavarede, concedendo-lhe largos privilégios, alguns dos quais bastante penosos para o nosso povo e dos quais aqueles fidalgos usaram e abusaram largamente.

         Há, também, a possibilidade dos Quadros já viverem no Couto de Tavarede, alguns anos antes, nomeadamente seus pais e irmão mais velho, Aires, pois existem registos de que este último era possuidor de algumas propriedades na nossa terra, as quais foram adquiridas por seu irmão, após a sua morte, na Índia, sem deixar descendentes.
        
Até ao ano de 1771, ano em que foi mudada a Câmara de Tavarede para a Figueira da Foz do Mondego, então elevada a vila e da qual Tavarede passou a estar dependente, não acreditamos que fosse possível haver aqui qualquer espécie de associativismo, ainda que de forma muito rudimentar, tal era o receio que os habitantes tinham dos fidalgos, a quem qualquer reunião seria suspeita de conspiração contra o seu poderio. Bastará recordar que, por exemplo, um dos privilégios dos fidalgos Quadros mais vexatórios para o povo, era o chamado da “poia”, que interditava qualquer tavaredense ou figueirense a que tivesse, dentro de sua casa, forno para cozer broa, assar carnes e, até, para assar qualquer fruta ainda verde e que o vento tivesse atirado ao chão.

No seu trabalho sobre a mudança da Câmara de Tavarede para a Figueira, o Dr. Rocha Madahil, baseado em documentos encontrados nos arquivos da Sé de Coimbra, refere “que fazendo algumas pessoas fornos para cozer pão em suas casas, lhes tem entrado pelas portas dentro acompanhado de seus criados e valentões e lhos derrubam e desfazem…”. Mas não julguemos que só os fidalgos é que tinham destes privilégios opressores. Não nos esqueçamos da visita anual do Deão da Sé de Coimbra e do célebre jantar, ou colheita, que estes povos tinham a obrigação de fornecer. Além de dinheiro, carneiros, cabritos, pão, ovos, vinho e outros géneros alimentares, lenha e temperos, tinham que fornecer “um quarteirão farto de cevada”, o que levou o Dr. Santos Rocha a dizer, ironicamente, que o Deão comia cevada! Mas não, a cevada era para as bestas de transporte.

Reforçando o que acima referimos quanto aos fidalgos tavaredenses, vamos buscar, à exposição que, nos princípios da segunda metade do século dezoito, o Cabido da Sé de Coimbra mandou ao Rei D. José I, a pedir a transferência da câmara de Tavarede para o lugar da Figueira da foz do Mondego, com o objectivo de acabar com o poderio e abusos dos morgados de Tavarede, o seguinte retalho: … e o mesmo fez em Maiorca, onde de noite foi ver uma comédia que se fazia em uma casa de Bernardo da Cunha, saindo com o seu capelão e mais pessoas de sua comitiva, segundo o uso e costume, com armas defesas, quis meter o festejo à bulha e descompôr o dito Bernardo da Cunha, que se não usara da sua prudência certamente o matariam, pois já iam com ânimo disso

Duas conclusões se podem tirar desta nota. Uma, a de que já na segunda metade do século dezoito (isto por volta de 1750) se fazia teatro em Maiorca; outra, a de que com tais ‘senhores’, de certeza que em Tavarede não se atreveriam a isso.

         Admitindo, assim, que o associativismo em Tavarede só terá sido possível depois daqueles recuados tempos, impõe-se uma pergunta: como seria esse associativismo?

         Fazendo uma breve passagem ao passado, logo ficaremos a saber que, naquela época, as associações existentes eram de classes, ou melhor dizendo, eram associações corporativas. Estas, desde tempos bem longínquos que existiam, tinham como fim a defesa de determinadas classes, profissionais ou religiosas, que se agrupavam para lutarem pelos seus interesses perante o poder estabelecido. Não eram, portanto, as associações culturais e recreativas a que nos estamos reportando. Estas, as associações de cultura popular e recreio, terão surgido no último quartel do século dezoito, quando os povos, influenciados pela célebre trilogia “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, que os ventos da Revolução Francesa e da Independência da América do Norte espalharam por toda a parte. Foi a partir de então que, apercebendo-se da necessidade da socialização e da instrução, os povos passaram a agrupar-se e a associar-se para busca duma cultura que até então lhes estava praticamente interdita.

         Regressemos à nossa terra. Em Dezembro de 1791, a décima Senhora de Tavarede, neta do célebre e famigerado Fernando Gomes de Quadros, talvez o maior opressor do povo tavaredense, casou com um ilustre e muito culto fidalgo, D. Francisco de Almada e Mendonça, que, enquanto governador da cidade do Porto e de várias províncias nortenhas, foi um grande protector das artes, nomeadamente da ópera, teatro, dança e música, mandando construir, do seu bolso, o conhecido Teatro de S. João, no Porto, onde fez representar as melhores companhias nacionais e estrangeiras, principalmente italianas.
        
Deste fidalgo, que passava largas temporadas em Tavarede, ficou a tradição de ser grande amigo e protector das nossas gentes. Acreditamos, por isso, que terá sido D. Francisco de Almada e Mendonça e sua esposa, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, quem terão incentivado, aos nossos antepassados, o gosto pelo associativismo e pelo teatro.

         Admitamos que terá sido assim. A única certeza que existe é que, no ano de 1865, existiam em Tavarede várias sociedades dramáticas onde se fazia teatro já com muita fama. As datas até parecem coincidir. D. Francisco de Almada faleceu no ano de 1804 e D. Antónia Madalena em 1835. E para representar, com um nível aceitável, certamente que já se representava em Tavarede haveria algumas décadas. 





sábado, 8 de dezembro de 2012

O Associativismo na Terra do Limonete - 1


  
             Em Tavarede…

                … as sociedades dramáticas vegetavam como tortulhos!



 

Tavarede de outros tempos…


         “… o José do Ignácio, havia sido também, em outro tempo, uma parte obrigatória em todas as sociedades dramáticas, que vegetavam em Tavarede como tortulhos…”.
        
Ernesto Fernandes Tomás, jornalista figueirense, nascido em 1848 e falecido em 1902, escreveu e publicou no jornal “Gazeta da Figueira”, ao longo do ano de 1896, uma extensa e descritiva reportagem, recordando as visitas que ele, acompanhado de um grupo de rapazes seus amigos, fez a Tavarede no ano de 1865, para assistir a “uns teatros” que aqui se representavam.
        
É bastante curiosa a frase acima citada dizendo que “as sociedades dramáticas vegetavam em Tavarede como tortulhos”. Aliás, e para quem se interesse por conhecer como era a vida dos tavaredenses nos meados do século dezanove, aconselhamos a leitura daquela reportagem, pois, além de nos descrever o que eram, naqueles tempos, as associações e o teatro que faziam, narra-nos, de forma assaz interessante e curiosa, variadíssimos aspectos da nossa aldeia, descreve-nos figuras e famílias que aqui conheceu e com quem conviveu, bem como nos relata vários aspectos da vida de trabalho dos tavaredenses, da religião e até alguns edifícios daquela recuada época, em especial capelas que existiram em Tavarede e que nós já não conhecemos, contando-nos, também, algumas histórias antigas de pessoas e factos que fizeram parte da história da “terra do limonete”.
        
Depois de percorrermos toda a imprensa figueirense disponível na Biblioteca Municipal da Figueira da Foz, é aquela reportagem a primeira notícia encontrada que se refere ao associativismo em Tavarede, na década de 1860 / 1870. A ela recorreremos em abundância neste pequeno caderno, no qual temos a intenção de descrever, com todos os elementos disponíveis, a carreira do associativismo na nossa terra e a importância que teve no desenvolvimento cultural e educativo dos nossos antepassados.

         Bem sabemos que há muita coisa escrita sobre este tema. Nós próprios, desde sempre interessados no assunto, já o temos feito, em livros publicados, em cadernos diversos e em notícias e histórias escritas na imprensa figueirense e, ultimamente, no blogue ‘Tavarede – A terra de meus avós’, onde vamos publicando várias histórias e historietas, umas mais antigas, enquanto outras mais modernas e actuais. Natural é, portanto, que se encontrem, neste trabalho, muitíssimas notas e informações já conhecidas daqueles que leram algo do acima referido, bem como outras publicações de pessoas bem mais sabedoras e conhecedoras do que nós, nomeadamente Mestre José da Silva Ribeiro, João de Oliveira Coelho, Manuel Cardoso Martha, António dos Santos Rocha, António Vítor Guerra e alguns mais, cujos trabalhos se encontram dispersos em diversos jornais, revistas e livros.
        
A nossa ideia é elaborar mais um caderno sobre a nossa terra, no qual, por ordem, cronológica de datas, seguiremos o associativismo em Tavarede. Não temos pretensões de deixar um trabalho sem falhas. Elas surgirão naturalmente. Os elementos recolhidos na imprensa local, em diversos livros e nos arquivos tavaredenses, estão muito incompletos. O que pretendemos, porém, é reunir e descrever, com todo o material disponível, o aparecimento e o seguimento do associativismo em Tavarede.

         Ora, fazendo fé na reportagem de Ernesto Tomás, se em 1865 se representavam, na nossa terra, comédias, dramas e, até, o “Presépio”, que deixou muita fama, teremos de concluir que para se atingir o alto nível que levava muitas pessoas da Figueira a irem a Tavarede para assistir aos espectáculos, até nas noites mais invernosas, o teatro, que certamente teria boa qualidade ou, pelo menos, bastante razoável, já se praticaria na nossa terra há algumas décadas. Podemos, até, situar, sem cair em grande erro, o princípio do associativismo em Tavarede nos princípios da primeira década do século dezanove, ou, talvez com mais realismo, na última década do século dezoito.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Teatro da S.I.T. - Notas e Críticas - 56 (fim)


2003.01.30     -     ANIVERSÁRIO DA SIT (O DEVER)

                Integrada nas cmemorações do 99º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT) iniciadas em 11 de Janeiro e que tiveram o seu momento alto na Sessão Solene realizada no passado dia 19, acto muito prejudicado pelo mau tempo que afastou muitos ds habituais frequentadores, realizou-se neste último sábado mais uma noite de teatro com a representação das peças “O Velho da Horta” (de Gil Vicente) e “Páginas Arrancadas” (de Luís Francisco Rebello), “duas peças portuguesas distantes no tempo cerca de 500 anos, que nos remetem para dois mundos diferentes, o riso e o choro, o cómico e o trágico lado a lado, o teatro nas suas duas grandes vertentes”, duas escolas de representação, numa demonstração inequívoca de que em Tavarede a arte de representar está preparada para os desafios dos mais evoluidos conceitos do novo teatro.
                Ninguém ignora que Gil Vicente se tornara “pessoa de família” no Teatro de Tavarede onde o saudoso Mestre José Ribeiro o “chamava a palco” sempre que era preciso dar uma lição, genuína, de bem o representar. Desde Violinda Medina, que na “pele” de Maria Parda ganhou jus, a nível nacional, à honrosa distinção de melhor intérprete daquela figura no nosso país, a muitos outros nomes grandes da Escola de Tavarede que serviram de modelo até a grupos profissionais.
                Com este “Velho a Horta” voltou agora ao de cima o virtuosismo herdado da escola de Mestre José Ribeiro com a interpretação superior de Rogério Neves a mostrar-nos um velho à medida de Gil Vicente, genuinamente à século XVI, até na naturalidade do uso das roupagens, gestos e salameques tão característicos da idade média, interpretação modelar só ao alcance de um amador de excepção a um nível que qualquer profissional não enjeitaria. Peça onde os restantes intervenientes mostraram a arte e o talento de emprestar ao enredo o “sal” que contribuiu para o sucesso – traduzido em muitos aplausos da assistência! – deste “O Velho da Horta”, transplantado, com mestria, do original.
                Gil Vicente não poderá estar ausente do centenário, a comemorar no próximo ano, nem a deixar de coabitar o palco centenário por muitos mais anos.
                Preenchendo a 2ª parte do espectáculo, a peça de Luiz Francisco Rebello, “Páginas Arrancadas” é um “psico drama” de outra concepção de teatro, assente num diálogo mais intelectualizado e de aproveitamento político em que os personagens se duplicam num jogo de mudanças de situação em que os meios técnicos assumem um papel fundamental – caso de mudanças de cena através de jogo de luzes, espelhos e transparências, sem necessidade do tradicional descer do pano ou mudanças de cenários, particularidade a exigir muitos conhecimentos técnicos e grande eficiência dos bastidores (palmas para os responsáveis por tão melindrosa operação!) – e sobretudo, a nível de encenação e direcção de cena, pela forma como souberam dar resposta às exigências desta nova metodologia de teatro de vanguarda, um teatro diferente a quem muitos apontam o dedo como responsável pela menor afluência de pessoas ao teatro.
                É por isso que queremos deixar aqui um aceno de muito apreço pela coragem de Ilda Simões e Fernando José Romeiro (encenadora e director de cena) pelo alto risco que correram ao apresentar uma peça de tão difícil “digestão” e a forma meritória como souberam “dar a volta ao texto”. Graças, sem dúvida, ao traquejo invulgar das “três estrelas da companhia” – os consagrados José Medina, Fernando Romeiro e António Barbosa – pela sagacidade como souberam tornear a “intelectualidade” dos textos atribuidos aos Jorge 1, Jorge 2 e Cristóvão, classe que constituíu a chave que “deu a volta” àquele complicado “registo psidodramático”, graças também à preciosa prestação de serviços dos restantes figurantes, com destaque para o “mau da fita” (Toni) a quem coube a “fava” de uma intervenção “chocante” com selo de “palavrão” tão característico do tal teatro de vanguarda mas que ele soube “adoçar” com um bom desempenho.
                Não fôra o talento destes amadores de fina água e talvez esta peça de “risco” não tivesse a aceitação que teve.

2003.01.31     -     TAVAREDE TEM T DE TEATRO (O FIGUEIRENSE)

                Desta vez os amantes de Teatro de Tavarede prepararam, laboriosamente, para apresentar aos que gostam de teatro “O Velho da Horta”, de Gil Vicente, e “Páginas Arrancadas”, de Luís Francisco Rebelo, um nosso contemporâneo. Voltámos a ver com muito gosto esta peça tipicamente vicentina em que os gestos, as momices e as carantonhas superam por vezes o português arcaico falado e agitam a assistência como aconteceu, mas não perturbou o arredondado intérprete do velho hortelão, que já quase dedilha a preceitoo “alaúde” com que a certa altura se “acompanha”, e que foi sempre muito bem secundado pelos colegas e, particularmente, pela enérgica e bem falante que “da vida” a Branca Gil.
                A peça de Luís Francisco Rebelo apresenta-nos algum vanguardismo na cena simples mas criativa, sem o cenário de aspecto tradicional e com um mínimo de adereços, apoiada em alguns efeitos sonoros e luminosos. Começa de forma inesperada e alertante ou chocante para o espectador e leva-nos a um passado não muito distante, que pode ferir algumas sensibilidades conservadoras ou frustradas, mas respeitáveis, recorrendo, uma ou outra vez, em momentos que não nos pareceram despropositados nem excessivos, ao uso de algumas expressões melindrosas, focando um tema que anda na berlinda e que aqui não desvendamos, mas achamos bem retratado e fixador da atenção dos espectadores como nos foi possível constatar.
                Embora não conheçamos o texto, achámos o psicodrama de Francisco Rebelo muito bem montado e bem representado, com mais preocupação na dicção do que nos gestos ou nas marcações, e pareceu-nos também que os artifícios usados com a luz, o sm e os painéis semi-transparentes foram soluções enriquecedoras da peça sem dificultarem a sua compreensão. A terminar, e sem nos metermos em apreciações que envolvam critérios de valor, permitam-nos expressar aqui o nosso agrado – nada mais do que isso – quanto as interpretações de Fernando Romeiro (Jorge 2 / A voz da consciência do personagem principal) e, muito especialmente, a de Valdemar Cruz num Tony muito convicente, ainda que pouco trabalhoso.

2003.04.03     -     PÁGINAS ARRANCADAS (A VOZ DA FIGUEIRA)

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                E logo aconteceu teatro. Os amadores da Sociedade de Instrução Tavaredense subiram ao palco do Testro Trindade (União Futebol de Buarcos) e representaram o psicodrama em um acto “Páginas arrancadas”, autoria de Luís Francisco Rebelo. Esta é a estória de ajuste de contas de um homem com a sua própria consciência. Aos 60 anos, Jorge é confrontado com o próprio “eu” quando tinha 20 anos. O jovem idealista e apaixonado vem pedir-lhe contas pela forma como viveu os últimos 40 anos de vida. Prova-lhe que “não é possível esquecer” o passado. Esta é, também, uma forma de levar o público a pensar no que de bom ou mau tem feito ao longo da vida. E é justamente esta uma das funções do teatro: levar as pessoas a pensar na vida, em todos os seus aspectos, positivos ou negativos.



A seguir:



sábado, 24 de novembro de 2012

Teatro da S.I.T. - Notas e Creíticas - 55


2002.03.14     -     PIRANDELO NO TEATRO DA SIT (A VOZ DA FIGUEIRA)

                No seu 98º aniversário, a Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT) levou e mantém em cena a peça “O Homem, a Besta e a Virtude” de Luigi Pirandelo, autor dos inícios do século XX. Não é fácil representar Pirandelo, mas os actores e actrizes da SIT já nos habituaram a não terem dificuldade em representar qualquer peça de teatro, por mais difícil que seja.
                Fernando Romeiro, o actor principal e que se mantém em cena todo o tempo, tem um desempenho excelente, no papel do professor Paolino que dá aulas particulares a vários jovens entre eles, o filho da senhora Perella com quem tem uma relação amorosa.
                Aquela personagem, a quem o marido, o capitão Perella não liga, mesmo quando vem a casa passados meses, é bem desempenhada por Rosa Paz que também já nos habituou com a sua presença em palco. Rogério Neves personifica muito bem o autoritário e machista capitão Perella.
                O bom desempenho de todos: o doutor Nino, por Valdemar Cruz; o senhor Tótó, farmacêutico, António Barbosa; Rosária, a governanta, Manuela Mendes; os estudantes, Gil e Abel, representados por José Miguel Pereira e Anselmo Cardoso; Nónó, João Pedro Paz; Graça, a criada, Maria Helena Rodrigues e o marinheiro, João José Silva, faz com que ao longo de aproximadamente duas horas se assista a teatro de qualidade, apanágio da SIT ao longo da também já sua longa existência, uma vez que está a dois anos da comemoração do seu centenário.
                Mas por trás dos bastidores toda uma equipa trabalha afincadamente, antes, durante e depois, dirigida e coordenada por Ilda Simões que tem feito um bom trabalho e que tem a seu cargo a encenação e direcção de cena, equipa composta por José Miguel Lontro, Nuno Pinto, José Maltez, Otília Medina, João Pedro Amorim, João Fadigas, José Manuel Cordeiro e Vitor Assis.
                Vocacionada desde sempre para o teatro, a SIT está a desenvolver um projecto a que concorreu, através da Delegação do Ministério da Cultura da Região Centro, tendo em vista a formação nos vários domínios, o adequado apetrechamento técnico e um arquivo documental ligado ao teatro, de forma a que possa vir a apoiar os outros grupos de teatro amador do nosso concelho, que é um exemplo no país e a testemunhar estão as 25ª Jornadas de Teatro Amador, organizadas pelos Lions Clube da Figueira da Foz e que irão decorrer a partir de 27 de Março, nas quais estão inscritos 26 grupos de teatro.

2002.05.02     -     É URGENTE O AMOR (O DEVER)

                Apresentando em estreia, com lotação esgotada e honras de presença do autor da peça – Luís Francisco Rebello – e também do engº Duarte Silva com alguns dos seus vereadores, a peça “É urgente o amor”, a Sociedade de Instrução Tavaredense deu uma lição de como é possível pôr a evolução tecnológica ao serviço do teatro de qualidade, aspecto a merecer uma referência muito especial para os homens que do escuro dos bastidores souberam fazer dos efeitos de luz “actores” decisivos na espectacularidade da representação, prescindindo das tradicionais descidas de pano para mudanças de acto.
                E foi, apoiados nessa mais-valia dos desenhos de luz, que os oito personagens “viveram” a tragédia da jovem Branca (Luísa Rosmaninho, com a naturalidade espantosa de transformar os problemas de há meio século em chagas de hoje) vítima daquela encruzilhada de vidas sombrias onde a mãe (Ilda Manuela Simões essa continuadora da escola de mestre José Ribeiro que lhe permite ser “pau para todo o serviço” – actriz a fazer inveja a muitos profissionais, encenadora de méritos reconhecidos e que nesta peça soube ganhar o desafio desta coabitação com os desenhos de luz, onde é justo deixar um aceno de muito apreço para José Miguel Lontro) soube assumir a mentira que serviu de suporte à peça e m que os papéis de maus do enredo tiveram magnífica interpretação nas pessoas de João José Silva (Alberto, o ausente da terra mas sempre presente no palco e direcção de cena, peça da mobília), e José Medina, um “Jorge” à medida das circunstâncias (dificílimas) em que se viu envolvido naquela teia de mentiras tão bem realçadas na penumbra da repartição de polícia onde o chefe (António Barbosa) e o seu agente (João Pedro Amorim) cumpriram as formalidades de assinalar o desenlace fatal esquecendo as denúncias de Margarida (Paula Sofia Simões), esposa traída, e da Madalena (Susana Neves), a falsa amiga da vítima.
                Porque as exigências técnicas de apoio à peça não deverão permitir a representação desta fora do Teatro da SIT, razão porque não está integrada nas Jornadas de Teatro Amador, e porque a alta qualidade do desempenho justificam plenamente a presença de quem tem gosto pelo bom teatro, aconselhamos uma deslocação a Tavarede para assistir a “É urgente o amor” numa das repetições que a muita afluência registada justificam.

2002.05.09     -     SIT PRESTA HOMENAGEM A GIL VICENTE (A VOZ DA FIGUEIRA)

                No corrente ano celebram-se os 500 anos da representação do primeiro texto vicentino: “Auto da Visitação” ou “Monólogo do Vaqueiro”. Este texto marca o início do teatro em Portugal. A Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT), assumindo-se como um pólo da arte de Talma no concelho, irá também assinalar “tão importante data, pois Gil Vicente teve sempre um lugar de destaque nesta casa”, conforme frisa a direcção da colectividade. “O Auto da Barca do Inferno, “O Auto da Alma”, “Quem tem farelos?”, “Todo o Mundo e Ninguém”, “O Velho da Horta”, “D. Duardos”, “O Pranto da Maria Parda” e “O Monólogo do Vaqueiro”, foram alguns dos trabalhos apresentados pelos amadores de Tavarede, sob a direcção do grande Mestre José Ribeiro.
                A direcção cénica considera que “apesar de todas as trasformações, de todo o dsenvolvimento que o nosso mundo tem sofrido Gil Vicente continua actual”,  que “a crítica à falsa moralidade a sociedade da sua época, aos costumes, ao quotidiano dos grandes e dos pequenos, leva-nos a reflectir sobre o ser humano que cada um de nós é”.
                Sendo da opinião de que o teatro também serve para nos conhecermos, nada melhor que trazer Gil Vicente para o palco e aproveitar esta data para “lembrar ou relembrar alguns textos vicentinos. Actores e público, vão ter oportunidade de estar lado a lado e frente a frente, em espaços tidos por convencionais para a prática do teatro, vão poder vivenciar as realidades do século XVI e vão poder compará-las com as realidades do século XXI.
                Desta forma, a SIT irá começar por fazer um espectáculo de rua, no dia 15 de Junho, o qual terá início às 16,30 horas, no largo da colectividade. Este espectáculo terá cinco actos e envolverá mais de 30 amadores, assim distribuído: 1º acto – Largo de Santo Aleixo: “O Velho da Horta”; 2º acto - Largo da Igreja: “Auto da Barca do Inferno” e “Todo o Mundo e Ninguém” (fragmentos); 3º acto – Largo Maria Amália: “O Pranto de Maria Parda” (fragmentos); 4º acto – Largo do Paço: “Farsa de Inês Pereira” (fragmentos); 5º acto – Largo da SIT: “O Monólogo do Vaqueiro”.
                O espectáculo, entre estes espaços, “desenvolver-se-á com movimentos e velocidades diferenciadas, onde serão explorados gestos e expressões, voz e improvisação”. A música da época acompanhará toda a actuação.
                No dia 15 de Junho, às 21,45 horas, no palco da SIT, acontece a representação de “O Velho da Horta” e uma palestra sobre Teatro Vicentino, proferida por José Bernardes.

2002.05.23     -     É URGENTE O AMOR (A VOZ DA FIGUEIRA)

                Sorririas, mestre Ribeiro, se ao lado de todos nós, presenciasses a todo um ideal que defendeste, a toda uma postura fiel a uma escola por demais viva e marcante, onde os teus princípios se traduziram não só na escolha do grande autor dramaturgo Luís Francisco Rebelo, mas em toda a envolvência programática feita de rigor, disciplina e método, aliado a uma grande alma e teatro, bem patente na dedicação, talento e garra desta gente do “povo comum”, que te honra e te segue passo a passo.
                Foi a primeira vez, mestre Ribeiro, que pisei esta sua segunda casa, quando junto à Igreja de Tavarede iniciei caminhada a pé, escalando o pequeno percurso das ruas estreitas em direcção à SIT. Depois da primeira subida, o corte à direita, uma grande luz iluminava a colectividade e logo a dita “catedral do teatro” estava ali, em frente aos meus olhos.
                A azáfama era grande entre os que organizavam as entradas e acomodamento do público e aqueles que metodicamente colocados nos seus postos, se preparavam para dar corpo à envolvência da representação, com um ambiente cenográfico adequado e, diga-se com justiça, perfeitamente conseguido.
                Às pancadas de Molière sucedeu-se um grito de angústia e morte, ao silêncio espectante da plateia, a envolvência arrepiante do resgate de uma causa perdida, o barulho ritmado das hélices de um helicóptero, as luzes em movimento estonteante, num bailado aflito de desespero e drama, e o público ali no meio, tomando conhecimento e certificando-se do inevitável fim de Branca, uma jovem que entre o inconformismo e a esperança, procurou o amor, sem nunca o ter conseguido.
                Orgulhosa poderá e deverá estar esta autêntica equipa da SIT, porque para além do mais, apresentou aspectos técnicos que tiraram um maior rendimento à pretensão da mensagem transmitida. No palco, um ambiente tão curioso quanto enigmático, onde a determinados “espaços de acção”, se juntavam a totalidade ou quase totalidade dos personagens, embora em ambientes perfeitamente definidos, a delegacia policial, Branca no além, ora prostrada no chão representando a morte, ora em acesas discussões e interpelações, com um alinhamento à sua volta, das pessoas da sua relação, ou ainda no exercício do regresso ao passado no espaço íntimo do seu próprio quarto. Tudo isto com o auxílio caprichado de um jogo de luzes onde cada individualidade alternava a acção com um silêncio presente, quedo e mudo, na penumbra do palco e numa postura comprometedora de conivência e sentido e culpa pelo desenlace fatal. Foi o prender da plateia a cada um dos intervenientes, mantendo uma relação forte entre o público e aquilo que cada uma significava para a procura da verdade.
                António Barbosa e João Amorim, ou melhor dizendo, o chefe e o agente Simões, de forma segura, serena e tranquila, conseguiam materializar a imagem pretendida de uma força de autoridade, que por função tinha deslindar um caso de hipotético acidente, suicídio ou homicídio, mas com um tal empenho de carácter duvidoso, entre a investigação dos factos e o interesse preferencial de umas boas palavras cruzadas, onde o saber qual o imperador romano com oito letras se lhes afigurava um objectivo de primordial importância.
                Susana Neves, no papel de Madalena, evidenciou atributos de uma artista em potência, com uma forte sensibilidade e uma margem enormíssima de progressão. Esta Madalena, nada arrependida de considerar os homens todos iguais e a mesmo tempo nutrir um carinho demasiadamente “especial”... por Branca.
                João Silva mostrou talentosamente como um drama não é só representação “séria” como pensará o “senso comum”. Com passos de quem bem conhece os caminhos de um palco, levou à cena o personagem Alberto, naquele que se pode afirmar tratar-se de um “chulo de cinco estrelas” que não via com bons olhos quando o dr. Jorge ameaçava deixar Branca, sua namorada, o que obviamente lhe colocaria instabilidade financeira. Por acréscimo da sua falsidade e cobardia, fugia a sete pés quando via o mar mais alto que a terra, nas discussões de Branca com sua mãe, provocando momentos de grande divertimento na plateia.
                Um elenco acima de tudo experiente, onde José Medina assume essa forte mensagem em cada palavra e em cada gesto, de como o tempo amadurece e dá consistência, como na vida também no teatro. E assim foi a melhor escolha para um dr. Jorge, com uma bonita idade para... não ter juízo assumindo-se com um verdadeiro mecenas que vivia entre o adultério e o conceito de família respeitosa, que não podia ser beliscada fosse por que preço fosse.
                Ilda Simões estará decerto duplamente feliz, porque na qualidade de encenadora viu a sua gente dar expressão aos seus desejos, com actuações de grande qualidade artística,  que ao facto não será alheio a sua galvanizante presença em palco, onde no papel de mãe de Branca, fez jus a uma brilhante interpretação feita de engenho e arte, num apelo muito forte ao estado de alma que apenas advém de uma genuina artista de teatro.
                Mãe de Branca era, como dizia Alberto, um “velho coiro” que incentivava a sua filha a uma relação amorosa com o dr. Jorge, de forma a tirar dividendos financeiros de tal situação.
                O bom e o bonito foi o aparecimento de Margarida, esposa do dr. Jorge e autêntica figura mistério, com acção apenas na parte final da história. Revelou a todos, e especialmente ao seu marido, que afinal de contas sabia de tudo, sofrendo no silêncio e na ânsia de recuperar só para si o dr. Jorge. Acabou por interferir também no labirinto de desencanto que levou à morte de Branca. Paula Simões, num menor tempo de actuação, provou com Margarida não deixar créditos por mãos alheias e chegar aos níveis altos dos seus colegas.
                Luísa Rosmaninho (Branca), que excelentes momentos nos proporcionou, mais um grande exemplo de que não é só preciso saber-se fazer teatro, isto no que concerne puramente aos aspectos técnicos de representação, mas também sentir o teatro, e se assim se pode dizer, com a sensibilidade do coração, numa aproximação de como quase fosse uma situação real.
Procurou dentro de si as suas qualidades inatas, que não se compram, não se vendem, não se aprendem, mas apenas teremos que lhes dar espaço para se revelarem. Luísa Rosmaninho é sem dúvida um nome a fixar.
Em tempos de tão badalada crise teatral, em boa hora organizou e apoiou o Lions Clube da Figueira da Foz estas jornadas de teatro amador, e se crise existe, então digo eu com toda a certeza, de que afinal não é geral e Tavarede é mais um bom exemplo e como o teatro no concelho da Figueira da Foz está forte e vivo e, sinceramente, recomenda-se.

2002.06.20     -     TAVAREDE EVOCOU GIL VICENTE PELAS RUAS (A VOZ DA FIGUEIRA)

                ... Na actividade da Sociedade de Instrução Tavaredense patenteia-se o culto do fundador do teatro em Portugal e revela-se o propósito de levar Gil Vicente ao povo, mostrando-o vivo, através das suas obras, sobre tábuas do palco...
                E assim foi. Tavarede é como que uma “ilustre e idosa senhora” que honra e sempre honrou com engenho e arte o culto da representação teatral. O teatro saiu à rua, de alegria estampada no rosto o povo apinhava-se nos recantos sombrios da povoação, a ansiedade sentia-se em cada gesto, o ambiente estava magnificamente ajustado a um pretendido regresso ao passado, as melodias impulsionavam o som de uma sublime flauta encantada, tão típica e marcante da época.
                Os batimentos melodiosos do sino da Igreja de Tavarede despertou Gil Vicente, o povo agitou-se e estava disposto a participar e foliar com sátira vicentina. Em dia quente escaldante, a corte desfilava altaneira as vestes pesadas do tempo, a beleza de luz e brilho de lantejoulas suportadas por artesanais desenhos de purpurina, que nos enchiam a alma e refrescavam os olhos.
                O bôbo da corte saltitava em animação estonteante, em círculos endiabrados e provocatórios, como que aferindo em cada um de nós um potencial e objectivo “réu” de barrete enfiado à sátira de Gil Vicente. O culto vicentino estava agora vivo e bem vivo e pronto para a abertura às eventuais hostilidades satíricas, um palco no meio de um riacho ou recanto escolhido para o “navegar” da dita “Barca do Inferno”.
                Fernando Romeiro era a imagem de um Satanás genuíno, de gargalhadas sonoras e movimentos maquiavélicos, aliciava e justificava passageiros para a sua barca, de diversos extractos sociais e múltiplas artes e ofícios. À sucessão de “Todo o mundo e ninguém”, iniciava-se a caminhada para o Largo de Maria Amália de Carvalho, defronte a um pequenito jardim, como tanto era do agrado de Gil Vicente, assistiu-se ao “Pranto de Maria Parda”, transformado num grande momento de teatro.
                Brilhou uma estrela, feita do povo, e com um dom que Deus lhe deu, e escusado será, que determinados intelectuais do teatro possam pensar que em algum momento deixarei de realçar e individualizar tudo aquilo que me arrepie o coração e estremeça os sentidos.
                Deixe que em primeiro lugar Otília Cordeiro, bem ao estilo medieval, lhe faça uma vénia por uma caracterização e Maria Parda feita de sensibilidade e minúcia e que tanto ajudaram ao êxito de Ilda Simões. Ilda Simões, repito. Encantou tudo e todos, deu espaço ao seu grande talento expressou com uma garra impressionante sentimentos de uma mulher perdida, satirizou, exagerou o quanto baste na procura do culto vicentino, que o diga Simões Baltazar, que ao seu espaço temporal de entrada em acção, no papel de Martim Alho, sorria ao bom sorrir com a performance entusiasmante da sua colega de cena, quase mesmo hipotecando o brilho da sua própria intervenção. Com a “Farsa de Inês Pereira” revelou-se acima de tudo a grande escola de teatro da SIT, onde Cátia, José Pereira e Emanuel Cardoso são a constatação viva de um futuro assegurado para a arte de representação.
                Do majestoso palácio de Tavarede, o regresso de novo à SIT, onde com o “Monólogo do Vaqueiro”, por mais uma vez, João José soube com mestria interpretar sentimentos distintos de expressão séria e momentos divertidos, num deambular artístico de assinalável mérito. Caíu a noite, na sala de teatro da SIT. Subiu ao palco, na íntegra, “O velho da horta”.
                O professor doutor José Bernardes, convidado especial para as comemorações, fez uma palestra muito interessante, deixando aos presentes indicativos preciosos de como interpretar um autor tão abrangente e complexo como Gil Vicente. Ficaram lamentos de que os 500 anos de teatro em Portugal não sejam motivo de comemorações mais dignas de âmbito nacional e elogiou a SIT por se revelar uma “pedrada no charco” no respeito por tal efeméride.
                Ao momento solene de entrada do Rei D. Manuel na sala e acomodamento nas cadeiras reais, fez-se escuro que nem breu, subiu o palco e lá estava o velho da horta no seu jardim, apaixonado e ao mesmo tempo enganado por si próprio, por um amor inantingivel onde a irreverência da juventude venceu a velhice inconformada. Um jardim verdejante e colorido, onde marcou pontos o magnífico jogo de luzes, que deu um ambiente de cena distinto e com atributos de bom gosto.
                O elenco foi como fechar com chave de ouro, como a fina flor, que divertiu e arrancou gargalhadas e, por fim, fortes aplausos de uma assistência que enchia quase por completo a sala
                O “velho” da horta era Rogério Neves. Senhor de um grande à-vontade no palco, deliciou e divertiu a plateia com momentos de expressão artística ímpares para o dito meio amador. Soube ser rigoroso consigo próprio, porque afinal de contas, não deve ser fácil exibir uma curvatura na coluna durante todo o espectáculo, que não lhe é peculiar na vida real. Por ali haverá, decerto, também o “dedo” de uma encenação cuidada.
                Uma jornada inesquecível, mais uma página escrita no já valioso património cultural da Sociedade de Instrução Tavaredense. Quanto a Gil Vicente, o agradecimento por continuar, 500 anos depois, mais vivo do que nunca.

2002.06.27     -     GIL VICENTE PELAS RUAS DE TAVAREDE (O DEVER)

                Misturam-se tradição, talento e trabalho agitam-se, em Tavarede, e obtém-se Teatro de Amadores Atentos, que gostaríamos de designar por Teatro de Amantes, com elevado nível. Digamos que essa miscelânea – ou liga, para os mais exigentes – não é nova, mas como, desta vez, foi agitada ao ar livre deu, no passado sábado, 15/6, Teatro Vicentino nas ruas da terra do limonete, com palestra, a propósito, e reconfortante serão para o ferido ânimo desportivo lusitano.
                Isto aconteceu porque os elementos do Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT) atentos como são, fizeram parar o trânsito e comemoraram o V Centenário da 1ª Representação Vicentina, o que se aceita ser o nascimento do Teatro em Portugal.
                Desta vez as pupilas e os pupilos (parece-nos justíssima a prioridade) de Mestre José Ribeiro – já ausente, mas sempre presente – fizeram com que, em boa hora, a obra de Gil Vicente, o pai do Teatro Português, andasse pelas ruas mais antigas da freguesia.
                As e os tavaredenses trouxeram para a rua o Teatro e fizeram apresentações nos largos, não muito largos diga-se, da urbe perante muita assistência e numa linguagem teatral, com laivos dum arcaico português, que conseguiu fixar a atenção de todos mesmo com a irreverência do feminino bobo da corte que por lá andava.
                Não é nossa pretensão escalpelizar aqui tudo o que vimos, mas não queremos deixar de referir a felicidade da escolha de locais como: o ribeiro de Tavarede onde estava o Demo e a sua Barca; a zona fronteira ao pequeno jardim onde uma Maria Parda, com uma incrível caracterização, teve espaço para se expandir; a proximidade do Paço de Tavarede, dando, simbolicamente, à Violinda Medina possibilidades de assistir ao que lá se representou, porque ali é lembrada com o nome numa placa e pôde “ver” actuar o futuro do teatro tavaredense; e no local mais adequado, em frente do busto do Mesre – Alma Mater do Teatro em Tavarede – onde se concluíu o teatro de rua, com a representação do “Monólogo do Vaqueiro” perante a “comitiva real” em que a presidente era a rainha.
                À noite, as comemorações concluiram-se, no salão da SIT, com uma excelente palestra pelo Dr. José Bernardes, a que se seguiu mais uma peça vicentina “O Velho da Horta”, numa cena simples mas apropriada, representada com gosto e com o nível habitual naquela casa. E tudo aconteceu graças ao trabalho, ao empenho, de mais de trinta pessoas, algumas pouco visíveis, como, por exemplo, quem dirigiu, coordenou e supervisou o acontecimento, que foram ELAS, as senhoras da SIT.
                Viveu-se, uma vez mais, Teatro em Tavarede, mas desta vez Gil Vicente até fez parar  trânsito.
                E nós por aqui paramos, depois de agradecermos uns rissóis que por lá comemos em companhia da “Companhia de Teatro do Condado de Tavarede” onde reinam os Medinas, mas não só.

2002.06.28     -    GIL VICENTE NAS RUAS DE TAVAREDE (O FIGUEIRENSE)

                Gil Vicente, tal como Shakespeare e tantos outros barões assinalados do Teatro, esteve no palco da Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT) mais do que uma vez (a primeira foi em 28 de Dezembro de 1946).
                Porém, neste ano em que se comemoram os 500 anos da 1ª representação vicentina, que o mesmo é dizer, do nascimento do Teatro em Portugal, era lógico que a SIT (que sempre teve como objectivo a educação pelo Teatro), não ficasse de braços cruzados. Com efeito, após as representações de Janeiro, pelo aniversário, presenteou-nos agora com alguns dos autos de Gil Vicente.
                Desta vez pôs-se de lado a habitual representação em palco e optou-se pelo exterior, como se se pretendesse ainda uma maior aproximação do povo da Terra do Limonete. Dir-se-ia que Gil Vicente, em vez de aparecer em palco, como em 1946, a dizer
                                               Boa noite, amigos meus!
                                               Ih! Tanta cara espantada a olhar-me, Santo Deus!
foi por ali abaixo, numa romagem de saudade, aos sítios onde viveram tantos dos seus amigos que, não só em Tavarede, mas também noutras localidades do concelho e do país, divulgaram a sua mensagem num falar “rude, franco e leal”.
                A primeira paragem para apresentação de “O Velho da Horta”, foi no Largo de Santo Aleixo, a dois passos da casa onde viveu José Luís do Nascimento (que em Janeiro de 1984 foi o sapateiro no Auto da Barca do Inferno). A segunda representação, “Todo o mundo e ninguém” e o “Auto da Barca do Inferno”, foi por cima do ribeiro, ao lado da igreja, num feliz enquadramento, perto da casa onde viveu João de Oliveira Júnior (no auto já referido, era o diabo). A terceira representação, foi a do “Auto de Mofina Mendes”, junto ao Jardim, bem perto das casas onde viveram Lurdes Lontro (que ainda na peça referida, foi Brísida Vaz, a alcoviteira) e José Ribeiro. Por feliz coincidência, tivemos em “palco” a directora actual do grupo cénico, drª Ilda Simões, que com o nível da sua actuação, prestou uma excelente homenagem ao histórico director do Grupo de Teatro. Em frente do Palácio dos Condes de Tavarede, representou-se a Farsa de Inês Pereira, frente à casa onde viveu António Jorge da Silva (que em 28 de Janeiro de 1946, foi um dos pastores do “Auto de Mofina Mendes”). A última representação, “Monólogo do Vaqueiro”, foi em frente à SIT, junto ao busto de José Ribeiro, e da casa onde viveu José Vigário (um dos pastores no auto representado em 1946).
                Será difícil passar em qualquer local de Tavarede, onde não viva ou tenha vivido algum actor da SIT, tal tem sido a sua actividade teatral. Os resultados saltam aos olhos de qualquer pessoa: os tavaredenses evidenciam-se pela afabilidade com que nos recebem e pela riqueza vocabular e correcção do seu falar.
                ... Foi ideia do Zé Manel – Esta foi a resposta que me deu a directora do Grupo de Teatro quando elogiei a localização do Auto da Barca do Inferno.
                Penso que esta resposta traduz uma abertura de espírito muito pouco vulgar nesta nossa democracia, que terá alguma coisa a ver com o elevado número de pessoas dispostas a participar não só no grupo cénico como nos outros muitos trabalhos feitos na “sombra” e que permitem a exibição de peças diferentes com pouco intervalo entre elas e apresentar um espectáculo disperso por 5 “palcos”, na via pública.
                Há quase 470 anos (completam-se no dia 11 de Julho próximo?), mestre Gil Vicente proclamava:
                                                                              Que ninguém busca consciência
                                                                              E todo o mundo dinheiro.
                Actualmente parece não se enxergarem quaisquer melhoras em relação ao tempo de Gil Vicente. Vivemos numa sociedade em que o consumismo campeia, provocando o endeusamento do dinheiro, perante o qual as pessoas capitulam, renegando a honra, palavra praticamente expulsa do nosso vocabulário. O egoísmo é cada vez maior e vai sendo ensinado aos jovens.
                Contudo, ainda é possível encontrar pessoas como estas com quem cruzamos na SIT, que dispõem dos seus tempos livres para fazer algo que lhes dá prazer espiritual especialmente ao saberem que estão a dar um contributo válido para melhorar o nível cultural e espiritual da sociedade de que fazem parte.
                É um exemplo reconfortante e estimulante para aqueles que não desistem da luta por um mundo melhor.
                Embora, infelizmente, as palavras de Gil Vicente continuem actuais, há que dar as mãos e não esquecer os versos que Manuel Alegre escreveu, na noite salazarenta:
 Mesmo na noite mais triste
Em  tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.