sexta-feira, 30 de março de 2012

RECORDAÇÕES DE TAVAREDE


Ao ver o dono da locanda, e os miseraveis apparelhos que o circumdavam na loja para supplicio dos desventurados freguezes, tivemos um quarto d’hora de desanimo; veio-nos á memoria uma partida do Alexandre, a nossa situação perante aquella guilhotina, quizemos retroceder mas, transpunhamos já o limiar d’aquelle antro de horrores, havendo já tambem trocado uma mimica de intelligencia com o notavel barbeiro em que lhe davamos a conhecer que estavamos disposto a barbear-nos... e tudo.


Sentámo-nos pacientemente n’uma cadeira, que alguma vez teria tido a côr primitiva do pinho, sem tinta; dennunciando aqui e ali a qualidade da madeira de que era feita em uma ou outra clareira que o cebo ainda não havia invadido.


Estavamos no banco dos condemnados.


Ali, sentados n’aquella celebre poltrona, mais se nos afigurava estarmos perto do apparelho da guilhotina, do que nas mãos d’um inoffensivo barbeiro com uns vicios intoleráveis de aldeia.


De vez em quando, o nosso Alexandre, que demorava perto, em casa do tio João Movilha, ia espreitar da porta se effectivamente já estaria consumado o supplicio. E nós, com uma paciencia de martyr, assistimos á collocação, sobre o peito, de uma toalha, que em tempos poderia ser alva de neve, mas n’aquella ocasião tinha um todo acinzentado, semelhando um d’esses fórros nevoentos que se desdobram no ar em tempo nevoento.


A breve trecho tinhamos pelos queixos uma velha bacia de louça, com um recorte semi-circular onde entrava o pescoço, e um naco de sabão já gasto, com que, á mão, o mestre nos ia enchendo a cara de espuma. Após ella a navalha; uma serra, a deixar sulcos na nossa pobre epiderme como uma charrua n’um terreno. Para suavisarmos taes angustias olhavamos de vez em quando para um infeliz canario, pardacento do fumo, que o malvado Figaro tinha engaiolado n’uma gaiola - ainda mais negra do que todo o interior do estabelecimento.


- Alguma reliquia de familia deixada pelo avô, e cuidadosamente conservada com os mesmos tons de antiguidade.


A espaços admiravamos tambem o magnifico arsenal que ali existia de chapeus de sol de differentes épocas, uns cobertos a panninho vermelho, outros a panno azulado, alguns a seda, mas esta a despedir-se do serviço por inutil.


A esta abstracção eramos roubados a par e passo pela voz do nosso... carrasco a perguntar-nos: “A navalha está boa?” - “Sim, senhor”, lhe respondia-mos; o que queriamos era furtar-nos ao tempo de mais alguns momentos estar sob o supplicio que o nosso Alexandre nos havia inflingido.


Quando o homensinho deu por acabada a faina, depois de nos escovar o fato com uma escova que alguma vez teria dado lustro em calçado, sentimo-nos feliz de poder livremente vadear Lisboa, com barba feita a dois patacos, que foi quanto nos pediram por tal desastre.

Saimos d’aquella caverna mal humorado, exquisito, amaldiçoando Lisboa, que ainda conservava em seu sêio umas taes espeluncas de lavar a cara a saloios. Conservavamos ainda no nariz o cheiro nauseabundo d’aquelle (Gazeta da Figueira - 28.11.1896)

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