sábado, 7 de abril de 2012

RECORDAÇÕES DE TAVAREDE

Largando o paradeiro aonde nos ensaboaram, enfiámos loja adentro do tio João Movilha. O Alexandre lá estava na sua mesma atitude trocista, garrotado na longa golla do jaquetão e fumando freneticamente no seu inseparavel cachimbo.


Uma descompustura que á queima roupa lhe démos, a proposito de ter-nos indicado o tal mestre, nada produziu no seu espirito para que se commovesse! Ria a bandeiras despregadas e talvez mais por ver-nos encavacado.


Um dize tu, direi eu, que estabelecemos, fazia rir de bom humor o velho Movilha.


Pelo meio da tarde d’esse dia de burlescos sucessos, lembrámos a Alexandre que nos achavamos ao acazo, sem eira nem beira, e precisados d’uma pousada certa, definida - um hotel barato perto da Ribeira, mas pouco exigente nos nossos magros fundos.

- Aqui por cima, no primeiro e unico andar, disse-nos elle, ha um nas circumstancias que desejas: é o hotel Cezimbrense aonde estou installado. Vaes para o meu quarto.


Aceitámos; ficando para a noite o visitarmos a nossa installação.


Pela noite, a horas de recolher, lá subiamos as escadas do tal Cezimbrense, e encontrando ao cimo a locataria - uma senhora quarentona, gorda e prasenteira, a quem fomos apresentado pelo nosso amigo, ao mesmo tempo que este declarava estarmos envestido na qualidade d’um novo hospede.


Adiante do ultimo degrau da escada abria-se uma saleta, pouco mais larga do que um corredor, aonde estacionava uma meza d’abas, tendo em cima um candieiro com a luz abafada por um abatjour. A uma das extremidades acostava-se uma senhora, ainda nova, filha da dona da casa, que a custo deixou um romance que ia lendo para fazer-nos uma leve inclinação de cabeça.


Podémos de relance notar que, essa indifferença, aliás natural nas pessoas acostumadas á entrada de hospedes a cada hora, não se estendia até á personalidade de Alexandre.


Hum... fallavamos nós para dentro - aqui ha coisa.


Dentro em pouco, sobre a mesma mesa estendiam-se as chavenas do chá para uma ceia-leve.


Alexandre ia a pouco e pouco sorvendo o contheudo da chavena e olhando a furtos para a pequena do romance que lhe ficava ao lado. Encetou-se uma conversação para encher quartos d’hora, em que a dona da casa não deixava esquecer a sua espionagem policial, para saber d’onde eramos, de d’onde vinhamos, e se tencionavamos demorar muito em Lisboa. Mas isto, dito entre sorrisos amaveis, delicados, e entremeiados d’uns parenthesis captivantes, muito naturalmente dirigidos á nossa magra bolça.


Não sabemos porquê, sentiamo-nos ali mal e bem. De quando em quando o nosso tympano auditivo, era desgostosamente despertado por um regougar estranho, muito semelhante ao longinquo quebrar das vagas, com sibilos intercalados, modulados pelo assobiar do vento no cordame dos navios.


Este assobiar desusado vinha-nos do lado de uma porta que se abria para a pequena saleta em que estavamos ceiando.


- Que diabo de assobiadela é esta? diziamos para o Alexandre.


- Ora... são hospedes que pernoitam cá na casa.


- Sim, repetimos... olha que isto mais parece uma philarmonica desafinada, do que gente que possua um nariz educado.


Riram-se todos.


D’ahi a pouco havia terminado a ceia, e fazendo nós as despedidas da noite ás donas da casa, fomos entrando a fatal porta de d’onde vinham os roncos que admiramos.


Por infelicidade o quarto que nós e Alexandre iamos habitar era contiguo ao detestavel paradeiro onde jaziam, quantas duzias de alemtejanos, deitados em camas infileiradas, á guiza de hospital. (Gazeta da Figueira - 5.12.1896)

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