sábado, 25 de agosto de 2012

Quadros - Os Senhores de Tavarede - 18


            Este morgado de Tavarede, Fernão Gomes de Quadros e Sousa, terá sido aquele que pior administração teve na Casa de Tavarede, levando uma vida de dissipação, criando enormes dívidas que, posteriormente, quase levaram à ruína…

            Entretanto, a sua violência sobre o povo, os vexames com que constantemente feria alguns e, sobretudo, as agressões de carácter sexual, de que foram vítimas muitas mulheres, levaram a que o Cabido da Sé de Coimbra deliberasse tomar a iniciativa de mudar a câmara, as justiças e a cadeia para a Figueira, convicto de que, com esta mudança, se acabaria com o ‘poder feudal’ que o morgado usava constante e abusivamente sobre os pobres povos de Tavarede e outros lugares vizinhos.

            Para este fim, e tendo obtido o acordo da câmara de Tavarede, formalizou uma queixa ao rei D. José I. A história desta questão foi minuciosamente estudada pelo ilustre investigador Dr. Rocha Madahil que, no ‘Album Figueirense’, publicou um extenso e bem elaborado estudo que intitulou ‘A mudança da câmara de Tavarede para a Figueira’, e no qual transcreve entre muitos outros documentos, a queixa apresentada e a resposta que a nobreza e o povo (obrigado a isso pelo seu senhor) deram, mas que, ao fim e ao cabo, resultaram na mudança efectiva das autoridades de Tavarede para a Figueira da Foz do Mondego.

            Senhor
            Representa a Vossa Majestade o Cabido da Santa Sé de Coimbra, só para o fim de livremente usar dos seus direitos no Couto de Tavarede em que é donatário da Coroa e para desagravar as Justiças, que naquele Couto o dito exponente confirma, e manter as pessoas e famílias dele livres de injúrias e opressões de Régulos, poderosos e mal inclinados, e com o preciso protesto de que da averiguação da exposição infra não resulte imposição de penas de sangue e mutilação de membro.
            Que no dito Couto de Tavarede vive dissoluta e despoticamente Fernando Gomes de Quadros, com o foro de fidalgo da Casa de Vossa Majestade e comendador nas Alhadas, com tão absoluto e independente poder com vexação das Justiças e povo.
            Que tráz as Justiças daquele Couto debaixo do pé e nada se faz pelo Juiz e vereadores que se lhe não dê a saber. Não se faz Juiz, Vereadores e Procurador do Couto que não sejam as pessoas que ele quer ou não quer que sejam, porque quando se faz a Justiça chama a casa os que hão-de votar, e quando eles não vão os procura e os faz votar nas pessoas que ele muito quer, e fazendo o contrário os ameaça com um vergalho, como fez ao capitão Isidoro dos Reis, homem do hábito de Cristo, que sendo Juiz ele o foi esperar para lhe dar com o dito instrumento, o qual, tendo aviso, se retirou, quando não certamente o descompunha.
            Que quando a Justiça faz eleição de recebedor das cisas de Vossa Majestade, ou quatro e meio por cento e outras fintas, se lho não dão a saber, quer que livrem a todos quantos fazem e por este respeito sucede as mais das vezes, vir Caminheiro pelos quartéis, por não haver Recebedor por causa dele. E o povo paga muitas custas, que se houvera Recebedor que tivesse cobrado o pedido a tempo, escusava o mesmo povo de pagar ao Caminheiro e de experimentar tão grande vexação pela dita causa.
            Que toda a pessoa que intenta por alguma demanda justa ou quer cobrar alguma dívida, se a tal pessoa não vai primeiro pedir licença e dar conta do que intenta fazer, faz que as Justiças dêem a sentença contra a tal pessoa, ainda que tenha razão e justiça, pondo-se pela contrária, com todo o seu absoluto poder chamando as testemunhas para que jurem o que ele quer e descompondo as que juram a favor da tal pessoa. E não só as trata desta sorte mas aos Juízes, mandando-lhes com império e ameaços, que façam o que ele lhes insinua, aliás, pau e vergalho. Porém ainda aqui não param as vexações que o dito povo padece com a vizinhança deste homem.
            Que naquela terra há muitos criminosos, por roubos que fazem em casas e fazendas, por dívidas que devem, pancadas e facadas que dão, os quais logo se vão recolher a casa dele como couto mais privilegiado que algum que haja no Reino, e ele os recebe e é padrinho de todos. Porque só o é dos maus e deste valhacouto entram a continuar nos seus roubos, e dando descomposturas e ferindo à sombra e capa do seu patrono. Como também o é dos ciganos quando vêm àquelas terras, sendo capa e dando hospedagem a todo o ladrão e pessoa de má consciência.
            Que sendo o Couto de Tavarede muito pequeno, tráz nele um grande rebanho de cabras, destruindo todas as vinhas e mais novidades dos pobres, e se acaso lhas deitam fora os donos das fazendas, os criados se levantam contra eles e os ameaçam com seu amo, cujo respeito os intimida a não defenderem o que é seu. E o mesmo sucede com os gados das pessoas que são da sua casa, por serem muitos os compadres e afilhados que logrão da isenção e privilégios da mesma, e estes, ainda que os seus gados sejam daninhos, não são coimados e se algum, por esquecimento da Justiça o foi, logo o faz riscar do livro e fica isento da coima.
            Que para maior esplendor da sua nobreza e respeito da sua casa, quer que tudo o que pede se lhe faça, ou seja torto ou direito, para o que intimida as Justiças deste Couto com a sua crueldade, que como são homens de menos esfera, qualquer coisa os intimida, e por este causa lhe disfarçam as suas insolências, e a toda a pessoa que não faz o que ele pede lhe costuma levantar labéus e formar crimes falsos, e como tem muitas pessoas de seu séquito e igual condição, faz as provas que quer. E a outras as induz a que jurem o que ele quer, e se o não fazem os castiga com pau e vergalho, e assim se vinga de quem lhe ultrajou o respeito faltando-lhe ao seu empenho, sendo máxima deste sujeito, como praticou a certa pessoa, que para a sua casa ser respeitada, hão-de andar os vizinhos sempre debaixo de um pau, sendo palavra muito sua: eles não querem, pois há-de sair o castanho, que é um bordão daquela madeira, com que tem dado muitas pancadas em muitos e da mesma sorte.
            Que traz os pobres trabalhadores destas terras arrastados, porque todas as vezes que quer algum serviço feito, os manda rogar e se não vão logo, por terem prometido para outro serviço, os descompõe a pau e vergalho, e muitas vezes os costuma ir tirar do serviço de outras pessoas aonde andam, ou do seu próprio serviço, dizendo que está primeiro que ninguém, e como não lhes paga, ninguém o quer servir e se o servem é com o temor da outra paga que ele costuma dar.
            Que só as pessoas que vivem mal e são mal procedidas favorece e os ajuda para o mal e faz com que as Justiças os não persigam, só para os ter na sua mão, para com a ajuda destes fazer tudo quanto quer e ser respeitado e temido, pois o ajudam nas pendências como pessoas próprias, e nas ocasiões de alguma prova de alguma causa com os juramentos falsos, que por seu respeito dão.
            Que também tomou umas casas de sobrado e quintal a Teotónio dos Santos Pinheiro, da Figueira, as quais tinha no Couto de Tavarede, sem que até ao presente as queira restituir a seus herdeiros.
            Que querendo o Cabido exponente arrendar a renda de Tavarede, este contrato para o que mandou pôr editais para se saber o dia em que o dita renda se havia de arrematar, o dito, para sua vingança, mandou pôr outros editais e vários papéis com letra desconhecida, que diziam: que qualquer pessoa que tomasse aquela renda visse como a tomava, porque lhe haviam de roubar os frutos e perseguir a quem a tomasse, e por esta razão persegue ao presente rendeiro, causando-lher mil vexações e ao mesmo Cabido, induzindo o povo a que lhe não pague os foros que lhe são devidos, assim pelo foral do mesmo Couto, como por sentenças que contra eles tem alcançado. Porém, esta inimizade que o suplicado tem ao Cabido, não só é por ser malévolo, soberbo e de desordenados costumes, mas porque lhe vem por herança dos seus antepassados, contra os quais alcançou o Cabido exponente muitas sentenças, não só em favor do mesmo Cabido, mas também daqueles povos que, oprimidos das injustiças que aqueles perversos homens lhe faziam, recorriam ao Cabido, como donatário daquele Couto, por mercê do senhor rei D. Sancho, de gloriosa memória, e não só o dito senhor rei os defendeu daqueles cruéis vizinhos, mas os senhores reis seus sucessores, de que se acham sentenças e  cartas aos corregedores de Coimbra, para que acudam às vexações que os ditos sucessivamente lhe iam fazendo, que este ódio vem sucedendo de pais em filhos, de filhos em netos, até chegar a este. E assim como este ódio se estabeleceu por geração, assim tambem é malinidade e perversidade de génios e soberba se foi seguindo de uns para outros.
            Que fazendo algumas pessoas fornos para cozerem o seu pão em suas casas, lhes tem o suplicado entrado pelas portas dentro, acompanhado de seus criados e valentes, e lhos derrubam e desfazem, como fizeram a Luís de Faria, da Figueira, Teotónio dos Santos Pinheiro e António Osório, todos homens de bem naquela terra, o que obra com o pretexto de ter provisão e sentenças possesórias para ter forno de poia. Na Figueira tudo obtido em tempo em que aquela terra e povoações não chegaria a ter cem vizinhos, sendo que hoje tem mais de seiscentos, sendo impossível que este aumento de povo seja bem servido só com o dito forno e fornalha, que o predito pretende conservar, apesar de toda a povoação em notória perda da mesma e de seu pão, dano que sofrem para não serem espancados e descompostos pelo predito e seu filho Pedro José (Joaquim).
            Que o predito suplicado acutilou nas lojas do Padre Cura Manuel Tomás, ao feitor de Fernando Maria, morador na cidade de Coimbra, que habitava no lugar da Figueira por nome Manuel Ribeiro Bravo, que no dito lugar tinha loja de comércio, correndo atrás deste com a espada nua, desde o armazém em que estava quantidade de peixe, até às ditas lojas, por o predito feitor lhe não dar fiadas umas arrobas de pescadas secas que lhe pedia.
            Que o dito suplicado foi a casa de Caetano dos Santos, do dito lugar da Figueira, para lhe dar, o qual com medo e para se livrar, saltou duma janela abaixo, do que ficou manco de ambos os pés e assim vive.
            Que não querendo um preto do Padre José dos Reis consentir que o gado do suplicado andasse em uma fazenda do referido senhor do preto, o dito suplicado, com um seu filho, entraram na dita fazenda para maltratarem o dito preto, que por fugir escapou de ser espancado com armas que levavam.
            Que as Justiças daquele Couto de Tavarede todas temem e tremem do suplicado e de seus criados, por estes não só castigarem por obra e palavra, não só ao que lhe fazem coimas a seus companheiros ou caseiros ou outros seus protegidos, mas a quaisquer que lhe não obedeçam em quaisquer matreiras de seu empenho, porque contra o supradito e sua família se não administra Justiça naquele Couto em tanto.
            Que dando o suplicado uns capítulos contra o rendeiro do Cabido exponente, e do juiz executor do mesmo Cabido, no suposto nome do povo e Câmara, sendo Vossa Majestade servido mandar que o Corregedor de Coimbra o informasse, mandou o referido Corregedor chamar os oficiais da dita Câmara de Tavarede, para que assinassem os ditos capítulos, os quais sendo vistos pelos ditos oficiais da referida Câmara disseram que tais capítulos se não fizeram nem mandaram fazer, e que o denominarem serem feitos em seu nome era com falsidade, como o era a narrativa dos mesmos e que por este motivo os não assinavam, do que sendo sabedor o suplicado mandou chamar os ditos oficiais a sua casa, e os descompôs e ameaçou, que se não assinassem os ditos capítulos, os havia de moer com um pau, e os preditos oficiais, para se verem livres das vexações que o dito suplicado costuma executar, com medo os assinaram, sem embargo do que Vossa Majestade informado da verdade pelo dito Corregedor foi servido escusar o requerimento.
            Que é o suplicado de tão depravado ânimo que até aos religiosos franciscanos de Santo António do lugar da Figueira chega a ferir a tirania daquele, porque querendo, fundamentado na sua fidalguia, se lhe faça tudo o que pede e sucedendo lançar fora do serviço daquela comunidade, o padre Guardião dela ao barbeiro da mesma, por faltas que tinha feito, recorreu o dito barbeiro ao patrocínio do suplicado e pedindo a este a dita graça, logo o suplicado o ameaçou que lhe havia de tirar quantas esmolas pudesse, como com efeito pratica pelos meios que pode excugitar os sermões daquelas freguesias vizinhas e outras mais esmolas que se costumam dar.
            Que o suplicado é costumado a proteger facínoras e a injuriar os honrados, porque andando um Francisco de Oliveira, do dito lugar da Figueira, homiziado por crime de traição e aleivosia, se refugiou na casa do dito suplicado (com exemplo deste proteger a outros mais delinquentes) e o dito suplicado o acompanhou com uma espada debaixo do braço até ao dito lugar da Figueira, e chegando ambos à porta do padre Libório (que era o ofendido com a dita traição e aleivosia) estiveram quietos muito tempo olhando para as janelas e casas do dito padre, observando se saía para o descomporem, segundo se entendeu.
            Que o suplicado nunca pagou a pessoa alguma que o servisse, assim com coisa fiada como emprestada, e se acaso alguns credores lhe pedem o que lhe emprestaram ou fiaram, os descompõe espancando-os com pau ou vergalho, e ao pouco de palavra e se manda pedir alguma coisa fiada e se não lhe fia faz o mesmo, com o que vivem aqueles povos tão oprimidos que ninguém é senhor de coisa alguma ao pé do suplicado, porque tudo o que lhe faz conta faz seu, tomando por força de pancadas o alheio se lho não dão, não pagando também aos trabalhadores que o servem.
            Que mandando a predito suplicado pedir a um inglês, chamado Daniel, umas pipas emprestadas, porque este lhas não emprestou, em razão de lhe serem necessárias para a condução dos seus vinhos, para o que já as tinha postas na praia para se embarcarem para a dita condução, o dito suplicado mandou conduzir para sua casa as de que necessitava, contra a vontade do dito Daniel, seu dono, sem sua licença. Como também mandou conduzir para sua casa uma pouca de madeira de um homem de Lisboa , de que estava entregue por comissão Luis da Costa, do dito lugar da Figueira. E haverá dois anos, com pouca diferença, mandou o dito suplicado pedir uma carrada de canas a um homem de Buarcos, e não condescendendo este com a petição porque as queria para as suas vinhas, o dito suplicado, com absoluto poder, mandou os seus criados à fazenda do dito homem e que dela trouxessem as canas, como com efeito violentamente trouxerão para as vinhas do referido suplicado.
            Que tendo António José de Saldanha, de Aveiro, uma quinta chamada da Fonte, com uma morada de casas de sobrado, no Couto de Tavarede, que são de uma capela, lhas demoliu violentamente o suplicado, e se aproveitou de toda a pedra, telha e madeiras, e fez das casas e da sua área picadeiro de cavalos, danificando os bens da capela que lhe não pertencem, e andando os bens desta arrendados por três moios de milho anualmente, o dito suplicado, pelo ódio que tinha ao referido António José, fez com que ninguem arrendasse a dita quinta por mais de setenta alqueires de milho, e alguns anos a fez ficar com menos renda por falta das ditas casas, que eram nobres e tinham acomodação para os frutos, que agora não tem.
            Que ao marchante João Lopes, de Maiorca, deve o suplicado quantidade de dinheiro de vaca que lhe fiou e quando aquele lhe pede a dívida o ameaça e descompõe com um vergalho, chamando-lhe nomes injuriosos. E todo o marchante que vai com vaca ao lugar da Figueira, ou há-de dar vaca para casa do suplicado e de suas amigas, sem osso, que nunca lhe paga, ou se algum o não faz é descomposto com pau e vergalho pelo suplicado ou sua família.
            Que o dito é tão costumado a obrar mal e de ânimo tão malévolo e falto de justiça, que vindo de Lisboa a Buarcos Bento da Cunha Terrão, a certo negócio de gosto, que tinha na dita vila, e convidando alguns parentes e amigos para o tal festejo o obséquio, o dito foi com os da sua facção, carregados de armas defesas, só a fim de deslustrarem o dito e seus convidados, chamando-lhe muitos nomes injuriosos, glosando-lhe várias poesias em que o descompunham e outros desaforos semelhantes, sem mais conveniência que a de fazer mal e de dar a conhecer a braveza de seu ânimo e a leveza do seu juizo. E o mesmo fez em Maiorca, aonde de noite foi ver uma comédia que se fazia em uma casa de Bernardo da Cunha, saindo com o seu capelão e mais pessoas da sua comitiva, segundo o uso e costume, com armas defesas, quis meter o festejo à bulha e descompôr o dito Bernardo da Cunha, que se não usara da sua prudência certamente o matariam, pois já iam com ânimo disso. Estas façanhas, parece, são estribadas na soberba e temerário juizo de que só a ele são devidos semelhantes obséquios, e por esta razão quer ser singular, desprezando desta forma ainda aos melhores daquelas terras, como é o dito Bernardo da Cunha.
            Que anda  o suplicado actualmente amancebado com uma filha sua, bastarda, chamada Antónia, filha de Isabel Gomes, mulher de Manuel Gomes Raposo, há mais de dez anos, e tem parido dele várias vezes, e chegou a ir a casa de sua mãe furtá-la, e deu muita pancada no dito Manuel Gomes Raposo, porque entendia ser sua filha e como tal a defendia para dele não ser roubada nem ofendida na sua honra, das quais pancadas esteve à morte e se queixou a Vossa Majestade, e veio decreto para ser preso. Porém, como é muito poderoso, fez com o Corregedor que era naquele tempo, que não desse a devida execução a tal decreto.
            Que sendo denunciado pela dita amncebia, diante da Justiça Eclesiástica da cidade e bispado de Coimbra, e sendo preso pela denúncia (por ser tão poderoso não foi ao Aljube, ficando sob fiança em casa de seu cunhado, o Correio Mor de Coimbra), e estando assim preso, numa noite saíu à rua e deu também muitas cutiladas numas pessoas, que, ao que parece, alteravam a rua. E também por ser tão poderoso ficou com menos castigo do que merecia, e depois que se viu livre da Justiça e foi para sua casa, tratou de se vingar nas testemunhas, que, com medo dele, não tinham dito a metade da verdade. E o primeiro foi o soldado José Mendes Ribeiro, de Tavarede, que esteve tão mal das ditas pancadas, que recebeu os Sacramentos. As mais se ausentaram da terra, tendo por melhor o degredo voluntário que se porem no perigo de cair nas suas mãos, menos certo soldado que se pôs na resolução de o matar no caso que o dito se resolvesse a quer ofendê-lo. E como assim o publicassem o dito se absteve do projecto com que andava. Também deu muita pancada na mulher de Rafael Lopes, da Figueira, Maria da Costa, e não só por suas mãos fez estes e outros distúrbios semelhantes, mas também pelos seus criados, como foi à mulher de Tomé de Carvalho, mandando-lhe dar muita pancada, de que esteve à morte, chamada Teresa Simões, de Tavarede, por um seu criado valente, chamado José Gomes. E não é necessário que os criados sejam muito valentes, porque a atrocidade do amo os faz ser cruéis e destemidos, fiados no respeito do mesmo.
            Que naqueles países de Tavarede, Figueira e lugares circunvizinhos, tem desflorado muitas donzelas e orfãs, como foram Teresa, do Couto de Quiaios, Maria Neta e Maria da Silva, da Figueira, e com esta andou muito tempo amancebado. Caetana Gonçalves e Maria de S. José, filhas de Manuel Francisco Matulo, de Tavarede, e mais duas filhas da dita Caetana Gonçalves, uma chamada Teodósia, outra Josefa Teixeira, coabitando com mães e filhas tudo a um tempo. Não falando em mulheres que lhe vão a casa, que dessas nenhuma escapa, e ainda as próprias criadas e escravas. E se alguma das ditas donzelas ou orfãs resistem e não consentem, no seu depravado ânimo lhes impõe testemunhos, dizendo que são mal procedidas e que o têm sido com ele muitas vezes, não se livrando as pobres da desonra da fama por se livrarem da da obra. Mas muitas vezes as pobres sem assistindo ao seu apetite escapam de que ele não diga logo o mal que lhes tinha causado, e assim têm sido muitas desonradas de obra e palavra, porque logo o publica pelo seu depravado ânimo e pouco temor de Deus.
            Que até a própria concubina, estribada no seu valimento, faz desacatos sem conta, porque a muitas mulheres honradas tem descomposto com nomes injuriosos, e a uma Josefa Vieira, mulher de Paulo da Cunha, quis-lhe dar com uma faca de ponta, andando ela em seu quintal. E a pobre mulher, com medo da faca, caíu com um acidente.
            Que o dito suplicado anda sempre armado com pistolas, facas, bacamartes, e foi a Buarcos arrombar a porta a uma mulher honrada, chamada Teresa Rocha, e a quis forçar pondo-lhe uma faca de ponta nos peitos, ao que a mulher resistiu e se livrou como pôde desta insolência. E não só destas usa, mas também seu filho mais velho, com o bom ensino do pai, que também foi uma noite com as mesmas armas à vila de Redondos, que fica pegada com a de Buarcos, e abriu a porta de uma estrebaria do padre Cura da dita vila e lhe furtou uma égua, e foi nela para as partes de Peniche, aonde a vendeu, e até ao presente a não restituiu. E entregando-lhe o alferes Manuel Bernardes, do Moinho da Mata, ao pé de Montemor-o-Velho, quarenta e tantos mil reis e um cavalo, para ele os entregar em Montemor ao licenciado Manuel Pereira da Silva, procurador do Cabido exponente, a quem o dito alferesera devedor, e por quem era executado, e lhos entregou na confiança de que pelo respeito do portador lhe fizessem algum rebate, ele o fez tanto pelo contrário, que fugiu com o dinheiro e cavalo, e enquanto tudo durou não tornou mais a casa, ficando o alferes sem o seu dinheiro e cavalo, que até agora se lhe não repôs. E o dito alferes foi preso pela dita dívida e morreu na cadeia. E o outro filho mais novo, chamado António Leite, vai seguindo as pisadas de seu pai e irmão, e já tem dado várias facadas, cometendo mulheres casadas e donzelas, e não só os ditos executam estes insultos mas também seus criados e familiares.
            Que tinha um capelão em casa, chamado padre Manuel Gonçalves, que, abusando das Ordens e do seu hábito sacerdotal, é contratador de cal e de bestas, e é rendeiro da Morraceira e companheiro na dita renda do Parada, de Coimbra. E também usa de armas defesas, como são pistolas, facas de ponta, e também tem descomposto muitas pessoas de bem a pau, como foi a Manuel Jorge Tega, de Tavarede, por este lhe não querer ir com o seu carro buscar uns poucos de paus e mato para o forno da cal, e o pôs à Santa Unção defronte das casas de seu amo, e tem feito o mesmo a muitas outras pessoas. E também anda amancebado, com mulheres de todo o estado, enfronhado no respeito de seu amo e fazendo como ele faz. E da mesma sorte são os mais criados, acompanhando a seu amo em vários distúrbios e com a capa dele,fazendo outros, usando das mesmas armas que ele usa, não só nas ocasiões em que ele os manda mas nas que eles tomam por sua conta pelo seu mau exemplo.
            Que o dito suplicado tem feito muitas mortes, porque matou a António Pedro, cunhado do Juiz da Alfândega da Figueira, de noite, com dois tiros de pistola, E deu tanta pancada em Manuel Ribeiro Bravo que este das mesmas pancadas morreu; como também matou um galego, no lugar do Pombalinho e da mesma sorte deu muita pancada em António Gil, marido de Nazaré Gonçalves, em forme que logo no outro dia morreu delas. E também deu tanta pancada em Manuel Ferreira Castanheira, da Figueira, que o deixou por morto, por este lhe pedir certa quantia de dinheiro que lhe devia de vaca, que lhe fiou do seu açougue em tempo, quando o dito Manuel Ferreira era marchante, sem embaraço de que até ao presente lhe não satisfez.
            Que também o mesmo suplicado deu muitas bofetadas na cara e pancadas no corpo de um seu tio, por nome de João de Quadros e Sousa, irmão de seu pai Pedro Lopes de Quadros, por o dito João de Quadros chamar sua mulher para sua casa, ao qual o dito suplicado ainda hoje traz muito atropelado por lhe não pagar uma tença de oitenta mil reis que seu pai lhe deixou, motivo porque se acha muito necessitado. Como também deu muita pancada em André Pessoa, da Várzea, e deu também tantas em Manuel da Silva, do lugar do Lírio da Alhada, que se lho não tirassem das mãos certamente o matava. Como também deu o suplicado com uma espada, de noite, em Bernardo Migueis, de Tavarede, e lhe lançou as tripas fora, e sem dúvida o mataria se não sucedesse topar-lhe a espada em um osso que a fez resvalar, excesso que obrou sem causa alguma justificada. E da mesma sorte deu muita pancada na mulher de Paixão Rodrigues, de Tavarede, por respeito de uma concubina que o suplicado tem há muitos anos, por causa da qual tem espancado a várias pessoas, que as testemunhas dirão.
            Que o suplicado se porta com tão pouca emenda daqueles excessos, que pouco tempo há que despedindo D. Isabel Senhorinha, mulher do médico de Leiria, Fernando Miguel, a um moleiro de um seu moinho, por este se não querer dar por despedido sem aquela lhe ajustar contas, pagando-lhe o que lhe restava, se valeu a dita D. Isabel do suplicado, para que este espancasse, ou mandasse espancar, ao dito moleiro, e com efeito o suplicado aceitando a deprecação o mandou espancar, por dois criados, um chamado José Borges, seu caçador, e outro Domingos de Carvalho, ambos de Tavarede, o qual Domingos Carvalho anda sempre soicado de armas a consentimento do dito suplicado.
            Que tanto é vício natural no suplicado e seus predecessores o viver com excessos e absolutos, que já aquela prática passou ao filho mais velho do suplicado, quando, próximo dos meses de Novembro ou Dezembro do ano de mil setecentos e cinquenta e quatro, tiranamente matou seu tio, o padre Frei Aires, religioso de S. Francisco, dando-lhe um tiro com uma espingarda, por este o repreender de alguns distúrbios que vinha de fazer no lugar da Figueira, além de outros que expostos ficam.
            Pede a Vossa Majestade se digne mandar que sobre o exposto informe o Corregedor da Comarca de Coimbra por direitos de testemunhas fidedignas e que para estas jurarem sem medo ou suborno, o suplicado seja exterminado na distância de trinta léguas e seus filhos, até se concluir  a diligência e pelo que constar administrar inteira justiça, para que o exponente e moradores do dito Couto e seu termo, de que é donatário, vivam sem a opressão do suplicado e sua família, tudo debaixo do protesto, no princípio desta representação expresso que o Cabido exponente aqui há por repetido. Espera receber mercê.

Sem comentários:

Enviar um comentário