sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 62

         Pela primeira vez, o teatro da SIT representou Gil Vicente, com o Auto da Mofina Mendes ou Os mistérios da Virgem. Foi mais um sucesso a juntar a muitos outros.
         Em Outubro de 1947, Tavarede prestou pública homenagem a D. Maria Amália de Carvalho, a primeira professora oficial que deu aulas de instrução primária em Tavarede, à qual deram a sua colaboração as associações da freguesia. Houve uma sessão solene realizada no Grupo Musical e um dos seus antigos alunos publicou a notícia de que recortamos a seguinte passagem: Efectivamente, na consagração prestada nesse dia em Tavarede à ilustre mãe espiritual de umas poucas de gerações de tavaredenses, em que os nobres sentimentos do reconhecimento e da sua gratidão andaram de mãos dadas; em que os esforços se congregaram e os corações se juntaram uns aos outros, fraternalmente, irmãmente, a freguesia de Tavarede soube demonstrar, de uma maneira clara e insofismável, que neste mundo de maldades, de egoísmo e de traições, ainda nem tudo está conspurcado e vilipendiado.
         De facto, assim é. Tavarede, pela tocante solidariedade do seu povo à brilhantíssima e apoteótica homenagem prestada há dias, lá, à muito querida e muito amada professora, srª. D. Maria Amália de Carvalho, provou ser (ou pelo menos desejar ser) excepção à regra no capítulo da maldade e da ingratidão humanas.
         Devem os tavaredenses estar satisfeitos por isso. Devem os meus conterrâneos sentir-se vaidosos por isso. Eu – seria falsa modéstia afirmar o contrário – sinto-me cada vez mais orgulhoso da linda terra em que nasci. Pelo salutar empreendimento que pensou e realizou há dias, em legítima homenagem a uma adorável e veneranda professora a quem tanto ficámos devendo...
         ... e pelo muito mais de bom e de útil que, tanto no campo da música como do teatro, por lá semeia, por lá cria, por lá come – e dá a comer aos outros... No Grupo Musical encontra-se, no seu livro de honra, uma honrosa mensagem escrita e assinada por aquela distinta professora.

         Variando o seu reportório, o grupo dramático da Sociedade de Instrução apresentou um novo e original espectáculo: Noite de Teatro Português. E de uma ida a Coimbra, respigámos a seguinte notícia: Aqueles fugazes momentos de grande prazer espiritual que nos proporcionou o Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, representando, no Teatro Avenida, na noite de segunda-feira última, Teatro Hierático – Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente; Teatro Romântico – 2º acto do drama A Morgadinha de Valflor, de Pinheiro Chagas; e Teatro Realista – 3º acto da peça Entre Giestas, de Carlos Selvagem, sob a direcção artística do nosso antigo e brilhante camarada José Ribeiro a quem a plateia de Coimbra não se cansa de aplaudir pelo muito que tem feito e continua fazendo, num afã prodigioso, em beneficio da Instrução do povo, … - esses rápidos momentos de deleite, -  para nós que tantas e tão grandes coisas más e coisas boas temos experimentado -, vieram-nos relembrar aquela pergunta feita, aqui há tempos, num colega – não sabemos por quem, nem isso nos interessa -: se amadores podem representar teatro clássico…?
         Dizemos nós:
         Podem, e tanto podem – sem grande dano da Arte e do Classicismo – que, a representação, agora, do Auto da Barca do Inferno, pelo Grupo Tavaredense – como, anteriormente, com a Mofina Mendes e no mesmo palco – é a sua última ratio.
         Podem, desde que tenham um José Ribeiro, pleno de competência, de zelo, e da probidade que deve assistir a tais representações: - José Ribeiro, que, mercê do seu valor intelectual posto à prova como jornalista e dramaturgo, nos tem proporcionado, através de mensageiros desse valor intelectual, momentos muito deleitosos, e que é um autodidacta que domina um auditório, com a sua palavra fluente, e que desse dom usou para nos dar, na abertura do Serão de Arte a que nos estamos referindo, e nos dois intervalos que se seguiram, uma bela lição da história do teatro.
         Porventura, em 1517, quando Gil Vicente fez representar este auto, bem vicentino “para consolação da muito católica rainha dona Maria…”, seriam letrados todos os seus intérpretes?...
         Estamos em crer que não, e que Gil Vicente, como bom ourives que era, teve de contentar-se com a “prata da casa”: o mesmo que acontece a José Ribeiro, que, além dum ótimo ensaiador, é um grande modelador, e que no caso em causa não se esquivou a testemunhar, publicamente, o que deve ao sr. Dr. Paulo Quintela que muito bem conhece o teatro vicentino, o muito que lhe deve na respectiva encenação.
         A obra cénica de José Ribeiro, fez-nos lembrar aquela Descrição do Estatuário: que da pedra dura, bruta e informe tira uma imagem perfeita e até um Santo que se pode pôr num altar…
         Podem amadores, mesmo iletrados, representar teatro clássico, ou hierático – como o Grupo de Tavarede agora nos deu entre calorosos aplausos dos espectadores que enchiam a trasbordar o Teatro Avenida, numa festa de Arte, em beneficio do Asilo da Infância Desvalida, em que, também, foi homenageado o seu muito querido Presidente, o grande Filantropo sr. Dr. Elísio de Moura, protector amicíssimo de mais de dois centos de meninas, desvalidas, que se acolheram sob a sua asa de Caridade e de Amor.
         Mas não devem: por que, no nosso parecer, esse teatro exige um ambiente que os muitos anos que lá vão transformou completamente, não obstante…
         Esse teatro – como aqui já dissemos – fez o seu tempo: como as candeias de azeite, - In illo tempore, em antes da luz fluorescente.
         São peças de Museu, para serem admiradas, e em que só se deve tocar com mãos purificadas pelo incenso da veneração por tudo o que é antigo e digno de respeito.
         Os calorosos aplausos que festejaram o Grupo de Tavarede na sua nova exibição no nosso palco – exibições que são sempre acontecimento teatral que chega a sobrelevar a noticia da vinda de qualquer companhia de renome -, muito ardorosos no final da Barca do Inferno, aumentaram         de intensidade no final da representação do excerto da A Morgadinha de Valflor: - prova provada de que o Teatro Romântico, numa das suas peças mais interessantes e festejadas, tem bons intérpretes, modelados por José Ribeiro: Luiz Fernandes, pintor, interpretado por João Cascão, D. Leonor Coutinho, por D. Violinda Medina e Silva, e pelos restantes: Fernando Reis, António Santos, Manuel Nogueira, João de Oliveira Júnior, D. Maria Teresa de Oliveira e D. Maria Dias – ou sejam: bons amadores que honram o Mestre, e que, vivendo o 2º acto de A Morgadinha num décor bem cuidado, e vestindo um luxuoso guarda-roupa, segundo figurinos da época, propriedade da Sociedade de Instrução Tavaredense, mereceram, pelo seu trabalho, calorosos aplausos.
         Fechou o espectáculo do Teatro Realista – o 3º acto da Entre Giestas, de Carlos Selvagem: acto duma grande intensidade dramática, em que António Geadas e Clara, jornaleira – interpretados, respectivamente, por João Cascão e D. Violinda Medina, mostraram, mais uma vez, o seu valor; e Fernando Reis, António Santos, Manuel Nogueira, José Vigário, José Santos, Fernando Santos, DD. Maria Teresa, Celeste Dias, Vitalina Lontro, Maria da P. Lontro, Idalina Dias e Maria Dias – todos amadores muito distintos – nos deram um conjunto muito bem afinado e dum realismo em que nada escapou à encenação: inclusive, num cenário, bem próprio, duma aldeia da Charneca, Beira Baixa – actualidade, nem sequer faltava uma meda à sombra da qual uma junta de bois ruminava, e olhava, de quando em vez a plateia, indiferentes… ao juízo que nós fazemos da vida.
         Tanto o cenário do Barca do Inferno como o do 3º acto da Entre Giestas, muito interessantes, são do distinto Artista Rogério Reynaud, bem como a montagem cénica.
         O cenário do Barca do Inferno…, talvez um pouco realista demais; mas, com a sua feéria, remediou quaisquer faltas que os mais exigentes pudessem notar.
         Na abertura, tivemos, na orquestra, nº 225 do Cancioneiro de Barbieri (Séc. XV e XVI) – João Badajoz, e À laia de prólogo – duas palavras que por sinal foram muitas e muito aplaudidas, pelo Director do Grupo Cénico.
         Na II parte, pela orquestra: Minueto – José Henriques dos Santos e, novamente, palavras por José Ribeiro acerca do Teatro Romântico.
         Na III parte, pela orquestra: Sobre canções populares da Beira – António Simões, e, finalmente, mais palavras, muito festejadas, do Director do Grupo Cénico, sobre o Teatro Realista.
         Fechamos estas nossas impressões, transcrevendo, com a devida vénia, fazendo nossas, as palavras com que terminava o prospecto do espectáculo:
         “Três épocas diferentes; Três géneros diferentes; Três estilos diferentes, reunidos num programa expressivo do teatro português e que constitui – que constituem, acrescentamos nós – ao mesmo tempo um soberbo espectáculo teatral”.
         Que pena, não termos muitos Josés Ribeiro assim, para se fazer reviver o amadorismo dramático…

         Mas… “Cesse tudo quanto a antiga Musa canta…”.

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