sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 64

      Aproximamo-nos dos fins da década de 1940. E o final da mesma trouxe a Tavarede um novo e brilhante espectáculo. Da autoria de Mestre José Ribeiro surgiu, no nosso palco, Chá de Limonete.

         Mas, antes de continuarmos com o teatro, vamos recordar que, em Abril de 1950, o Grupo prestou homenagem ao seu conjunto privativo, pelo seu décimo aniversário.


Lúcia-Lima-Jazz - 1950

         E voltemos ao Chá de Limonete. Para saber do que tratava a peça, um jornal figueirense foi entrevistar o seu autor. O grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense vai dar-nos em breve mais uma nova peça – e desta vez uma peça bem sua. Os leitores do Notícias da Figueira já lhe conhecem o título, visto que em tempos aqui noticiámos ir entrar em ensaios a fantasia Chá de Limonete.
         Certos pormenores que por acaso ouvimos referir aguçaram-nos a curiosidade de saber mais alguma coisa acerca da peça tavaredense. O Chá de Limonete seria realmente o que ouvimos? Se assim fosse, o grupo de Tavarede iria oferecer-nos uma autêntica novidade, merecedora da atenção de quantos se interessam pelo teatro de amadores.
         Facilmente nos esclarecemos indo à vizinha terra do limonete, onde conversámos com o director do grupo da Sociedade de Instrução Tavaredense, sr. José Ribeiro. Acolheu-nos prontamente e francamente respondeu a quanto lhe perguntámos, sem reticências nem rodeios.
         = É então certo que o Chá de Limonete vai ser servido ao público brevemente?...
         = Sim. A não surgir qualquer contratempo, devemos representá-lo em Tavarede no dia 21 de Outubro próximo. Contamos vencer, até lá, as dificuldades de vária ordem que se deparam na montagem duma peça deste género.
         = E nós esperamos vê-la na Figueira pouco depois.
         = Não. O Chá de Limonete não sai de Tavarede. Será representado exclusivamente no teatrinho da Sociedade de Instrução Tavaredense.
         = Mas sempre o seu grupo tem levado à Figueira as peças que ensaia...
         = É certo, e sempre o público figueirense tem sido amável e generoso com os amadores de Tavarede, ainda que às vezes se não dê pela presença destes na Figueira, como poderá concluir-se do silêncio dos jornais sobre as representações, certamente por ficarem desertas as cadeiras dos críticos, as quais, aliás, nunca deixaram de lhes ser reservadas... Mas, como iamos dizendo, desta vez não iremos à Figueira. A peça foi escrita e está a ser montada para Tavarede, e daqui não sairá.
         = É então uma peça bairrista, tavaredense 100 por cento, apenas para tavaredenses...
         = Nada disso! Chá de Limonete é tavaredense de gema – 100 por cento, como Você disse – mas é uma peça para toda a gente. Os casos referidos, os episódios, as figuras vêm da tradição, da história e da crónica locais; mas as histórias que se contam e vivem (a peça poderia chamar-se – História de Tavarede)  tão bem as entende o espectador tavaredense, como o figueirense, como o de qualquer outra parte.
         = Já agora, se quisesse levar ao fim a sua amabilidade, podia dar-nos um resumido esquema da revista...
         = Revista... Está bem, sim, pode chamar-lhe revista, por comodidade de expressão: porque se trata de uma obra teatral que é uma sucessão de quadros, agrupados em 3 actos. Mas não nos faça a injustiça de supor que vamos, incoerentemente, oferecer ao nosso público uma revista... revista!
         = Se quisesse esclarecer o seu pensamento... Parece que o género não tem a sua simpatia...
         = Referimo-nos à revista estilo Parque Mayer, tão inferiorizada e contra a qual se insurgem os apreciadores do bom teatro ao vê-la representada por profissionais. Ora, se são amadores que a representam, o caso ainda é mais grave, porque estes só nos podem dar o que a revista tem de mau, sendo-lhes inacessível o que nela ainda existe de bom no aspecto artístico. Levaria tempo a desenvolver aqui o que sobre o assunto pensamos.
         = Podemos dar publicidade no Notícias da Figueira às opiniões que lhe acabamos de ouvir?
         O nosso entrevistado encara-nos com expressão de grande franqueza, e muito singelamente diz:
         = As minhas opiniões, sobre teatro ou sobre seja o que for em que posso tê-las, costumo afirmá-las em voz alta. Ponha-as em letra redonda se lhe apraz, embora eu não tenha nisso qualquer interesse.
         = Mas os nossos leitores gostariam de conhecê-las...
         = Dê-lhes, então, opiniões de críticos abalisados. Sempre valerão mais do que as minhas. Estas, por exemplo.
         E foi buscar-nos recortes de jornais, donde copiamos:
         Diário de Notícias: “O teatro de amadores de Lisboa ou de algures foi, de há tempos a esta parte, contaminado pelo vício da revista, não para exaltar o regionalismo através de quadros típicos e figuras pitorescas, mas copiando servilmente os aspectos banais das revistas em série, modelo P. M., com os mesmos defeitos e até com o mesmo guarda-roupa já bastante usado. E isso é, realmente, perigoso para a finalidade educativa das Sociedades de Instrução e Recreio.”.
         A Voz: “... o mesmo compadre, as mesmas chefes de quadros, as mesmas rábulas e as mesmas canções... Seria prudente mudar de rumo e fazer alguma coisa de original...”.
         Diário de Lisboa: “... De modo que é difícil deixar de ter duas maneiras de ver – uma para o Parque Mayer (mesmo quando ele mora algures), outra para a louvável e generosa iniciativa dos amadores. Mas se estes, arrastados por um poder de entusiasmo mal orientado, se deixam levar para propósitos de fazer tão bem (ou tão mal?...) como a produção terrivelmente comercializada contra qual todos se costumam insurgir e da qual todos se dizem fartos, arriscar-se-iam a que o público em geral e o comentarista em especial passassem a olhar o caso sem o benefício da benévola simpatia que irresistivelmente se usa atribuir-lhes.”.
         O Século: “... A revista segue a traça comum, entremeando quadros de comédia com quadros de rua e utilizando os moldes habituais. Há o indispensável microfone, o infalível fado...”.
         República: “... É pena que algumas (revistas de amadores) não mantenham mais puras características locais e sejam demasiadamente “Parque Mayer”, circunstância que, em vez de as valorizar, as desvaloriza. Com um pouco mais de orientação e de critério artístico, estas revistas seriam, além dum passatempo para os seus intérpretes, um excelente meio de divulgação de costumes, de tradições e de belezas bairristas.”.
         = Aí tem. Eu entendo que revistas de amadores devem ser isso mesmo: além de saudável passatempo. “um excelente meio de divulgação de costumes, de tradições e belezas bairristas”.
         Aqui objectámos:
         = Mas é inegável que o público acorre precisamente a essa “produção terrivelmente comercializada”, o que significa que é disso que ele gosta.
         = E... acha que não deve tentar-se nada para melhorar o gosto do público? Será então função dos grupos de amadores manter e explorar o mau gosto do público? Parece-lhe que é assim que as Sociedades de Educação e Recreio cumprem a sua missão, como se em vez de sociedades de educação e recreio fossem apenas... empresários a farejar negócio?
         E, sem nos dar tempo a responder, o nosso entrevistado continuou:
         = Não responda, que não é preciso. Fechemos o parêntesis e voltemos ao Chá de Limonete. Que quer saber então, concretamente?
         = Diga-nos qual o assunto da peça, o esquema sobre que foi construída.
         = Como lhe disse, são histórias de Tavarede. Está claro que sendo de Tavarede, o são também da Figueira, de Buarcos... Numa sucessão cronológica de 24 quadros agrupados em 3 actos, passa a história da terra do limonete. No 1º. acto – “Tavarede de Outros Tempos” – o Velho-Tavarede mostra a Frei Manuel de Santa Clara vários episódios: a doação de Tavarede à Sé de Coimbra, com o Rei D. Sancho I, a Rainha D. Dulce, os Bispos de Braga, de Viseu, do Porto e de Lisboa, o Alcaide-Mor de Coimbra, o Mordomo-Mor da Cúria, o célebre notário Julião, etc. (ano de 1191); as marinhas de Tavarede (século XVI), pois era então aqui bastante numerosa a classe dos marnoteiros; a bruxa de Buarcos Isabel Peixinha e as laranjas da China... de Tavarede (século XVII); um aspecto da luta entre o Fidalgo Fernão Lopes de Quadros e o Cabido de Coimbra (século XVIII), terminando o acto com o celebrado jantar do Deão de Coimbra na sua visita anual a Tavarede. O 2º. acto – “Couto sem Cabeça” – abre com a mudança da Câmara de Tavarede para a Figueira e mostra-nos ainda costumes dos séculos XVIII e XIX como os fornos da poia, os lombos e a língua de vaca, a colher das papas, a saia-balão e um episódio relacionado com a tomada do Forte de Santa Catarina aos franceses em 1808. No 3º. acto – “Tavarede de Hoje em Dia” – surgem números de carácter folclórico, rememoram-se tradições, põem-se a falar – e a cantar... – figuras como o velho ribeiro de Tavarede, o palácio dos Condes, a fonte, os potes enfeitados do 1º. de Maio... E a concluir, como lição moral da peça, a glorificação do trabalho.




 Chá de Limonete
Jardins de Tavarede - final

         = Mas, pela resenha que lhe ouvimos, o Chá de Limonete exige montagem dispendiosa!
         = Sem dúvida. Veja a variedade e a quantidade de indumentária e cabeleiras para as várias épocas... E cenários... Para todos os quadros estão a ser pintados cenários próprios por dois grandes artistas: o nosso Reynaud e o cenógrafo do Teatro D. Maria II, Manuel de Oliveira. E oiça isto, que é curioso: os rapazes da direcção da Sociedade de Instrução Tavaredense dispuseram-se a pôr em cena o Chá de Limonete sem nenhuma esperança de que as receitas cubram as despesas! Todos os louvores lhes são devidos. Para proceder assim é preciso ter coragem e não ser dominado por estreito critério comercial de empresário. E fiquemos por aqui. Dentro de pouco estão lá em cima, no teatro, os rapazes e as raparigas à espera, para o ensaio...
         = Podemos assistir?

         = Se o desejar... Mas olhe que estamos apenas a ensaiar a música. A propósito: posso dizer-lhe que a música é lindíssima, toda original de António Simões. Chá de Limonete ficará sendo um dos melhores trabalhos deste distinto artista-amador.

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