sexta-feira, 21 de março de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 68

Em Maio de 1953, tiveram início as festas comemorativas do 50º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense. Foi realizado um baile, durante o qual foram anunciados os vencedores de mais um concurso de quadras populares, desta vez alusivo ao perfume 1002, da Nally. A comissão nomeada para programar as festas das Bodas de Ouro, teve actividade enorme, nunca se poupando aos trabalhos que lhe eram exigidos. Para conseguir obter alguns fundos, que tão necessários eram, realizou, no seu campo de jogos, mais umas ‘Grandes Festas de Arraial’, nas quais tiveram a colaboração de alguns dos mais  afamados conjuntos musicais da região.

A festiva data, que tinha um significado muito especial para todos os tavaredenses, mereceu uma nova entrevista com o director cénico. É longa, mas é muito expressiva da acção da colectividade. Na histórica e aprazível povoação de Tavarede, há meio século que se vem erigindo, pedra sobre pedra, com inteligência e tenacidade, vultuosa obra colectiva e teatral pouco vulgar, cremos que única, no meio provinciano.
         Se algum dia ao historiador do teatro português interessar fazer o balanço do contributo prestado à arte dramática, pelo ignorado amadorismo, onde esse mesmo teatro foi recrutar, tantas vezes, as suas grandes figuras, que para serem grandes não careceram das luzes do Conservatório, porque as tinham já consigo desde nascença, ver-se-á no dever de consagrar capítulo especial à vida e obra da Sociedade de Instrução Tavaredense, de preclaras tradições e que tem levado a numerosos e apartados pontos do país a galhardia da sua arte de representar, e, com ela, um rosário apreciável de benemerências a favor de instituições de caridade e utilidade pública.
         Sabendo que a prestante colectividade vai comemorar no mês decorrente as Bodas de Oiro da sua fundação, julgámos de interesse para os nossos leitores ouvir alguém que nos elucidasse acerca das actividades da mesma e outros pormenores relacionados com a tradição teatral da pitoresca Aldeia do Limonete. E não havia que hesitar: só uma pessoa reunia plenamente as condições necessárias para satisfazer a nossa curiosidade e interesse - o seu dinâmico e prestigioso director cénico José da Silva Ribeiro.
         Jornalista distinto, culto noutros aspectos do saber humano - é vastíssima a sua cultura neste ramo por que se apaixonou desde novo.
         Como crítico teatral, quando exercia a crítica, a sua opinião era considerada e temida pelos “ases” da cena portuguesa, ao apresentarem-se, com as suas companhias, perante a exigentíssima plateia figueirense.
         Conversador sugestivo e atraente, torna-se, pela lhaneza do seu trato, acessível e pronto a quem quer que necessite dos seus prestimosos serviços.
         E fomos ouvi-lo. Encontrámo-lo absorvido pelos cuidados do seu novo trabalho - 50 Anos ao Serviço do Povo - no qual evoca e passa em revista os factos da Sociedade de que tem sido o infatigável, o grande, o maior de todos os obreiros. Mas nem isso o impediu de gentilmente nos acolher. Depois de lhe transmitirmos os nossos propósitos e removermos o obstáculo sério das suas ocupações de momento, disparámos-lhe, para principiar, duas perguntas:
         - É muito remota a tradição teatral em Tavarede? Lemos algures que já em 1877 existia em Tavarede um teatro de amadores que por causa das desordens que sempre havia nas noites de espectáculo foi mandado encerrar pelo Governador Civil do Distrito. Tem fundamento histórico esta notícia?
         - Efectivamente, - começa o nosso interlocutor - a tradição teatral é aqui bem vincada. Já Ernesto Fernandes Tomaz, na descrição que fez de Tavarede numa série de artigos publicados na Gazeta da Figueira em 1896, dizia que as sociedades dramáticas vegetavam em Tavarede como tortulhos. O episódio do encerramento dum teatrito que aqui havia, vem referido, como verdadeiro, por Pinho Leal no seu dicionário geográfico Portugal Antigo e Moderno. O teatro foi mandado fechar pelo Governador Civil em 1877, por motivo das desordens que se verificavam na noites de espectáculo. No livro comemorativo das “bodas-de-ouro” da Sociedade de Instrução Tavaredense - 50 Anos ao Serviço do Povo - a aparecer dentro de poucos dias, indicam-se os diversos locais onde se apurou que funcionaram teatros no século passado.
         - É verdade que as gentes de Tavarede manifestaram sempre natural pendor para o teatro?
         - Vem de longe o gosto dos tavaredenses pelo teatro. Esta gente tem-se mostrado muito inclinada às artes do teatro e da música. Alcançaram fama os teatros e as tunas de Tavarede. Não obstante a vizinhança de paredes-meias com a cidade, a um tempo benéfica e prejudicial, o sentimento associativo perdura na população desta velha e pobre aldeia.
         - Quais os nomes que no passado revelaram, de facto, decidida intuição para a arte dramática?
- Amador de grandes méritos, característico solicitado por todas as companhias do seu tempo, foi nos meados do século passado José Luís Inácio, casado com Luísa Genoveva, que foi também amadora. Na segunda metade do século, brilharam à luz da ribalta tavaredense - de cebo e petróleo - muitos actores e actrizes, dentre os quais se destacavam António de Oliveira, Ricardo Nunes de Oliveira (o tio Ricardo da Margarida), José Vigário e António da Silva Coelho (que todos conheceram por António da Barra), estes dois, respectivamente, pais dos amadores do mesmo nome ainda hoje no activo; Manuel de Oliveira Bertão e António Cruz (pai dos ilustres e saudosos tavaredenses drs. Manuel e José Gomes Cruz), insubstituível nos papeis de Jerónimo e Moço da Passarola do Presépio. No elenco feminino faziam figura Maria da Luísa Marcelina e Eduarda Matoso. Mais recentemente, já no começo do século actual, José Medina, excelente amador tanto no género dramático como no cómico, e ainda mais perto de nós, os dois irmãos António e Jaime Broeiro, para só falarmos dos que já não existem. Os vivos, todos os conhecemos, e alguns deles, tendo começado com a Sociedade de Instrução Tavaredense, ainda hoje dão as suas provas sobre as tábuas do palco.
- Arriscamos mais duas perguntas: - Porque não se abalançou até hoje a S.I.T. a construir sede própria se dispõe de condições primordiais, para isso, pela actividade e valor do seu grupo cénico? Não haveria vantagem em construir uma sede maior para reunir numa só récita o público que, por exiguidade do seu teatrinho – como V. lhe chama – tem que ser distribuido por vários espectáculos?
- A Sociedade de Instrução Tavaredense está instalada no edifício do Largo do Terreiro que foi, como sabe, a velha casa chamada de Ourão, transformada por João José da Costa - esquecido mas inesquecível benemérito - num, para o tempo e para a terra, óptimo teatro. A grande aspiração da sociedade era adquirir o prédio, para viver em casa sua: realizou-a, comprando o prédio. Depois, dado o desenvolvimento da actividade associativa e as responsabilidades e anseios do grupo cénico, outra aspiração surgiu: ampliar e transformar a sede, melhorando as instalações de uso permanente dos sócios e dotando-a com um teatro maior, um palco bem apetrechado que permitisse alargar e aperfeiçoar a obra de cultura que a Sociedade de Instrução Tavaredense vem desenvolvendo através do teatro. Este projecto é, de momento, irrealizável. Seriam precisas 3 a 4 centenas de contos. Onde ir buscá-las? Não esqueçamos que Tavarede é uma terra muito pequena e de população pobríssima. Não há aqui beneméritos ricos. E beneméritos... sem dinheiro não podem fazer obras que só com dinheiro se fazem...
- Pomos uma objecção:
         - Mas o grupo cénico tem uma actividade invulgar, e conquistou merecidamente um público entusiasta que acorre a aplaudi-lo...
         - É certo. Note-se, porém, que as récitas na sede são para sócios e famílias, e raramente pagam a montagem de cada peça. E dos espectáculos em teatros públicos são poucos aqueles cujas receitas revertem para o cofre da associação. Pode objectar-se que é excepcionalmente elevado o número de espectáculos de beneficência. Na verdade, uma lista, aliás incompleta, das récitas de beneficência realizadas na Figueira e noutras localidades pelo grupo tavaredense, mostra que o seu número se eleva a 98. Pelos elementos de que dispomos, e pelo valor actual da moeda, podemos sem exagero avaliar em mais de 400 contos o produto líquido entregue pela Sociedade de Instrução Tavaredense a obras de beneficência e a instituições de utilidade pública. Mas não sejamos ingénuos ao ponto de supormos que esta importante soma poderia também o grupo cénico alcançá-la para as obras da sua sede...
         - Mas, aproveitando o verão, não seria possível obter receitas importantes com representações nos teatros da Figueira? - interrompemos.
         - Oiça-nos com paciência. Nem tudo o que luz é oiro. Realmente, alguns anos atrás o verão era pródigo. Dávamos dois espectáculos em Agosto e dois em Setembro com casas cheias e resultados tão animadores, que se chegou a alimentar a esperança de ganhar em 10 anos o preciso para as obras. Mas... era a época das vacas gordas, que passou depressa. De há um tempo a esta parte verifica-se que sobem as despesas e descem as receitas. Posso citar-lhe um espectáculo de que, pagas as várias despesas e 5 contos do aluguer do teatro, ficaram para o cofre 350$00. E como não haveria de ser assim com as nossas representações, se é assim também com o teatro profissional? Uma boa parte do antigo público esqueceu o teatro; o novo - nem sequer o conhece. Solicitam-no a doença nacional do futebol (repare que nos referimos a doença) e a exploração industrial do cinema; e os organismos oficiais  facilitam e auxiliam a fuga dos velhos e a ignorância dos novos. Se o objectivo do Estado e das autarquias locais fosse a extinção do teatro em Portugal, não poderiam fazer melhor do que estão fazendo. É certo que a Sociedade de Instrução Tavaredense não sacrifica aos deuses da bilheteira, e podia, com outra orientação, melhorar bastante os resultados materiais da sua actividade teatral; mas, fazendo-o, traía a sua função. Ao programa educativo e cultural que a Sociedade de Instrução Tavaredense procura realizar através do teatro, não se ajustam transigências de género parquemaieresco nem exibições estilo retiro da Severa ou variedades da rádio.
         Perguntamos a José Ribeiro:
         - O campo em que recruta os intérpretes para as suas peças tem qualquer particularidade que o distinga dos outros meios associativos do concelho?
         - De maneira nenhuma. Os elementos do grupo cénico são recrutados na população tavaredense, indistintamente. Desde os cavadores de enxada, passando pelos vários ofícios e pela vida comercial na cidade vizinha; desde as raparigas da lavoura que passam o dia no amanho das terras e no trato dos animais, até às costureiras dos alfaiates e das modistas e às que labutam na vida doméstica, de tudo se encontra na companhia de Tavarede.
- Pode citar-nos os êxitos teatrais mais salientes alcançados pelo seu grupo cénico?
         - Como êxito de público, O Sonho do Cavador ocupa o primeiro lugar, com mais de 50 representações. Mas se bem interpretamos a sua pergunta, devemos citar Entre Giestas, Recompensa, A Nossa Casa, Horizonte, Canção do Berço, Génio Alegre, Auto da Barca do Inferno, Chá de Limonete e, o mais recente, Frei Luís de Sousa.
         Continuamos a inquirir:
         - Quais as peças que até hoje representou cuja acção decorre em Tavarede?
         - Com acção passada em Tavarede - Na Terra do Limonete, de João dos Santos e Dona Várzea, de João dos Santos e José Ribeiro, musicadas por Gentil Ribeiro; Pátria Livre e Em Busca da Lúcia-Lima, de João Gaspar de Lemos Amorim; A Cigarra e a Formiga, de Alberto de Lacerda e José Ribeiro; Grão-Ducado de Tavarede, O Sonho do Cavador, Evocação, Retalhos e Fitas e Chá de Limonete, de José Ribeiro - todas musicadas por António Simões. Além destas, outras peças se escreveram propositadamente para a Sociedade de Instrução Tavaredense: Histórias da Roberta, O Nascimento do Messias e as adaptações Morgadinha dos Canaviais e Justiça de Sua Magestade.
         Não resistimos a perguntar:
         - Com a sua acção educativa a S.I..T. tem conseguido sensível melhoria na educação do povo e morigeração dos costumes locais?
         - Não pode negar-se a influência da actividade da Sociedade de Instrução Tavaredense na população de Tavarede. Muitos foram os que aprenderam a ler ou se aperfeiçoaram na escola nocturna que funcionou até 1942. É também elevado o número dos que, passando pela secção dramática, beneficiaram da acção cultural e educativa que ali se desenvolve com uma continuidade verdadeiramente excepcional. E é igualmente de considerar a influência exercida sobre o público que lhe frequenta os espectáculos e as palestras.
         - Porque deixou de manter a sua escola nocturna?
         - Porque não foi possível dar cumprimento a certas exigências de carácter legal. Também no livro 50 Anos ao Serviço do Povo se indicam as razões que impediram a Direcção da Sociedade de Instrução Tavaredense de manter a escola, inteiramente gratuita, que funcionava desde a sua fundação em 1904, com uma frequência de cerca de 50 alunos, menores e adultos.
         - Verifica-se que a S.I.T. restringiu notavelmente o número de bailes realizados anualmente na sua sede. Obedece isso a medida de carácter económico ou ao reconhecimento da vantagem moral de sacrificar o baile ao teatro?
         - Eis uma pergunta agradável de ouvir, porque revela um interesse honroso, que contrasta com a indiferença de muitos. Mas... é bom esclarecer. Os bailes nas associações proporcionam algumas horas de recreio à massa associativa. O recreio também é necessário. É certo que algumas associações fazem do baile semanal, ou pouco menos, a razão de ser da sua existência. Se não fazem mais nada, havemos de concluir que fazem pouco e que sendo sociedades de recreio, não o são de educação. Por isso nos não interessam na mesma medida. Mas... será mais prejudicial à saúde física e moral, o baile ao sábado ou ao domingo na sociedade de recreio da aldeia, do que o baile diário, durante 3 meses consecutivos no casino da cidade? Quanto à Sociedade de Instrução Tavaredense, não há senão que louvar o critério dos seus directores considerando suficiente a meia dúzia de bailes que durante o ano oferece aos associados na sua sede.
         - Estamos de pleno acordo - acrescentámos. E permita-me outra pergunta: Tem sentido dificuldade na escolha de peças para o seu grupo?
- É sempre um grande problema. Independentemente do valor da peça como obra de arte teatral, há que ter em conta certas limitações e contra-indicações que resultam do meio em que nos encontramos, dos elementos de que dispomos e dos fins que nos determinam. São cada vez maiores as dificuldades. Algumas peças que nos serviriam estão-nos interditas, porque o empresário que as representou em Portugal não nos permite a sua representação. Veja-se a estreiteza deste critério, que, generalizado, extinguiria no nosso país o teatro de amadores, uma vez que não pode esperar-se dos autores dramáticos – coitados deles, apertados já em tantos condicionamentos!... – que escrevam peças só para amadores...
- Só mais uma pergunta para terminar: - Acha que são demasiado pesados os encargos que recaiem sobre os espectáculos de amadores?
- Partimos do princípio de que o teatro de amadores, praticado com devoção quase heróica pelas sociedades de educação e recreio espalhadas pelas vilas e aldeias de Portugal, constitui valioso elemento de cultura e recreio do povo, que interessa à nação manter em actividade. É assim que o Estado o encara? É seu dever, nesse caso, facultar-lhe e facilitar-lhe meios de vida. Presentemente as coisas passam-se como se os espectáculos de amadores fossem apenas... matéria colectável; cobram-se licenças, censura das peças, vistos dos programas, imposto sobre espectáculos públicos (!) e contribuições para a Caixa Sindical de Previdência dos Profissionais do Teatro (!!). Uma carga asfixiante! Não está certo. Se o estado não presta outro auxílio, que ao menos não queira fazer dinheiro da actividade desinteressada do teatro de amadores. O regime da cobrança dos direitos de autor continua a ser o mesmo - não obstante terem decorrido dois anos desde que foi nomeada uma comissão para estudar o assunto -, permitindo a fixação arbitrária de taxas em muitos casos proibitivas. E, a carregar ainda mais as tintas do quadro, aí temos agora a lei que regula a assistência de menores a espectáculos, tão louvável nos princípios com que se apresenta como lamentável e perniciosa na forma da sua aplicação. Podíamos apresentar-lhe casos concretos e bem expressivos, mas... iríamos muito longe. Não lhe parece que já lhe dissémos o bastante para se concluir que, na verdade, é precisa uma devoção quase heróica para continuar a manter entre as povoações rurais o fogo sagrado do teatro?
         Não podíamos deixar de concordar com o nosso entrevistado, de quem nos despedimos, profundamente reconhecidos e sensibilizados pelo prazer que nos deu e que sabemos ir igualmente proporcionar aos nossos estimados leitores com o conteúdo desta entrevista.

         Para fecho, só nos resta fazer votos que a velha Sociedade de Instrução Tavaredense possa continuar - e continue sempre - na sua activa e contínua acção de bem-fazer, pois na vida dos homens e das instituições só tem verdadeiro mérito o que se faz bem feito e o que se faz por bem.

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