sexta-feira, 6 de junho de 2014

Usos e Costumes na Terra do Limonete - 23

 Os populares arraiais
         Não temos quaisquer dúvidas de que Tavarede sempre foi uma terra festiva. Já recordámos, por exemplo, as famosas festas ao São João de Tavarede. Mas, sendo gente que trabalhava arduamente durante toda a semana, era uma necessidade que sentiam de aos domingos se envolverem em diversões, durante as quais se afastavam por momentos da duríssima vida que tinham no amanho das terras ou nos seus ofícios quotidianos.
         Também os antigos ranchos, onde dançavam animadamente as raparigas e os rapazes da nossa terra, deixaram muita fama e imensa saudade naqueles que ainda tiveram o prazer de os viver.
         Antes de recordarmos as costumadas festas de verão, vamos dar mais uma pequena olhadela às antigas notícias que nos contaram alguma coisa sobre este costume. Recuando até ao verão de 1901, encontrámos uma notícia confirmando o que dizemos.
         “Este titulo vae decerto attrahir a curiosidade e attenção dos nossos jovens leitores. É isso mesmo o que queremos, e tal foi a intenção com que o empregámos.
O calor, insupportavel que hontem e hoje nos tem causticado com os seus raios coruscantes e vae acabando de mirrar as pobres hastes de milho que ainda vegetam por essas terras e que há um mez, tão vicejantes, nos deleitavam o olhar e nos incutiam a risonha esperança d’um anno agrícola abundante, obriga um pobre mortal a abeirar-se das janellas e a tomar o fresco que a noite lhe offerece.
É exactamente o que succede comnosco, e eis que, jovens leitores, para vossa consolação e prazer, o vosso repórter aldeão poude ouvir da sua janella a conversa d’uns quatro rapazes folgazões que hontem, perto das 11, combinavam: - ornamentar o largo do Paço e promover ali uma dansa na noite de sabbado para domingo, e na tarde d’este dia, além de dansa, falavam em se fazerem umas corridas de prémios por indivíduos montados em gericos, outros dentro de saccos, corridas de mulheres com potes, etc.
Foi isto, meus amigos, o que ouvimos. E, passando a coisa de palavras a obras, o que lhes podemos também affiançar é que no Largo do Paço já está içado um enorme mastro, que amanhã é ornamentado aquelle local, que a orchestra já fez ensaio, e que os rapazes estão animados da melhor vontade para vos proporcionar algumas horas de dansa, que amanhã começará pelas 10 horas da noite e acabará á 1, e no domingo principiará pelas 5 da tarde, terminando sabe Deus quando.
Sobre corridas, porém, de nada podemos informal-os com verdade, porque ellas dependem de massa para os prémios, e isso é coisa que os rapazes estão vendo por mesas altas. No entanto a dansa faz-se, e cremos ser o que mais interessará á alegre mocidade.
E vós, caros figueirenses, preparae as merendas e vinde no domingo por ahi fora. Sombras benéficas é o que por ahi há mais, limonete, já há pouco, mas, procurando bem, ainda encontrarão umas pontinhas d'elle para consolar os órgãos do olfacto, sempre suspirando por cheiros perfumosos. Eis do que basta informal-os hoje. E tu, mocidade, alegra-te”.
Sabemos que, naqueles recuados tempos, eram dois os locais onde habitualmente se instalavam os pavilhões, no Largo do Paço e no Largo do Forno. E era nestes locais que dançavam, respectivamente, o Rancho Flor da Mocidade e o Rancho da Alegria
 
 Rancho da
Alegria

         Havia, até, grande rivalidade entre estes dois ranchos, o que nos é contado por esta pequena notícia recolhida. “... Todas querem a primazia e daí lançam mão de certos meios que nada depõem a favor de umas e de outras. Os epítetos grosseiros e obscenos de que se servem, são impróprios de raparigas honestas e sobretudo das que possual uns rudimentos de boa educação... “. Pelos vistos, a maior rivalidade era entre as raparigas!
         Vejamos, agora, uma outra nota que nos conta o despique que havia cá na terra. “Prosseguiu hontém a luta entre os dois ranchos dançarinos da localidade. À meia noite começou a campanha e ao raiar a manhã ainda os pares se seracoteavam com toda a galhardia ao som dos trombones, que, sem cessar, nos aturdiam os ouvidos.
         Vencido era o primeiro rancho que suspendesse a dança, mas às nove horas da manhã nem um nem outro davam signal de baquear, embora interviessem por vezes algumas potencias estranhas, aconselhando o armistício. -”É tempo de usar dos direitos que me são concedidos pela lei fundamental da nação portugueza e códigos apensos”, exclamou o nosso conspícuo regedor, que é homem a bulhas contrário, como dizia Tolentino. Dirigindo-se com toda a diplomacia aos chefes das duas facções, com eles parlamentou largamente, e às dez horas, no relógio do António Mota, o mesmo sr. regedor lançava aos ares um foguete, os trombones roncaram o hino da carta adorada, terminando assim a memorável batalha d’hontem.
         Vencedores - os donos dos estabelecimentos locaes.
         Vencidos - os chefes de família e a ala de tuberculosas d’amanhã.
         O pavilhão da vitória deve ser arvorado no alto de S. Martinho e o registo de recompensas faz-se no livro negro dos taberneiros.
         Dizem-nos que os ranchos se denominam: um - das solteiras, outro - das casadas. Vae crear-se outro - de viúvas... bem conservadas. Tem sido muito censurado o procedimento do sr. regedor, dizendo algumas pessoas que ele devia ser enforcado ou metido perpetuamente na penitenciaria. Veremos se o não matam este anno”.
         Estes casos prolongaram-se por vários anos, conforme este apontamento que encontrámos em 1911. “Nos ranchos é que se vê como as nossas patricias se apresentam galhardamente. Mas que luxo... Tudo cheio de laços!... No preterito sabbado até pareceu mal taes laços a um velhinho que observava os lindos conjunctos das danças, recordando-se assim dos seus tempos de rapaz, quando gosava.
         De madrugada, o bom do velhinho retirou, censurando as cachopas de Tavarede, porque, dizia elle, nunca nos meus tempos se tirou á barriga para tanto luxo. E ámanhã, essas raparigas, com o olhar inundado de mau aspecto, recolherão á cama tossindo... como tossem os tisicos”.

         Nesse ano o rancho da Alegria ‘dançou no Largo do Forno em pavilhão fechado, onde pagavam à entrada cada rapaz 100 réis e cada rapariga 60 réis’. O caso até foi aproveitado para um quadro da revista ‘Na Terra do Limonete’, no qual uma peixeira, que queria divertir-se um bocado, vê um festeiro dizer-lhe “se tem três vinténs para dar, entra, se não tem... vá andando”. Ao que a aludida peixeira retorquia “Olha agora! Louvado seja Deus! Já quem não aveza três vinténs se não adverte...”.

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