sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 99

         E não devemos deixar de registar que o espectáculo, em Coimbra, com a peça O tartufo, em benefício da Obra do Prof. Dr. Elísio de Matos, foi filmado pela Radiotelevisão Portuguesa que, posteriormente, apresentou diversos excertos.

         Com toda a certeza que se estranhará, neste trabalho de relembrar o associativismo na terra do limonete, dedicarmos tanto espaço com transcrições de notícias sobre a actividade da Sociedade de Instrução Tavaredense e fazermos tão poucas referências ao Grupo Musical e de Instrução e à terceira congénere da freguesia, o Grupo Musical Carritense. Toda a razão, é verdade, mas o caso tem uma explicação, por acaso bem simples. O Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, que teve um brilhante passado e que durante cerca de vinte anos desenvolveu extraordinária influência na vida associativa e cultural da nossa terra, nomeadamente através do teatro e da música, devido à falta de instalações, dedicava-se, neste tempo, quase que em exclusivo, à realização de festas dançantes, das quais guardamos tão saudosas lembranças, com a excelente colaboração do seu conjunto musical privativo, o Lúcia Lima Jazz, não deixando, também, e quando o julgava oportuno, aqui trazer outras afamadas orquestras, as quais eram sempre um atractivo para elevado número de frequentadores.

         Não esquecemos, igualmente, a confraternização que proporcionava com a realização de passeios e a diária afluência de espectadores assíduos aos serões televisivos. Quanto ao Grupo Musical Carritense, que inicialmente se dedicou, mais activamente, à música, com a sua tuna e a sua aula de música, igualmente se dedicava ao recreio de seus sócios e famílias, passou, algum tempo depois, a dedicar-se também ao teatro. Mas, a principal razão de pouca informação nossa, é que, quando nos dedicámos à recolha das notícias da nossa terra, preocupámo-nos, quase que exclusivamente, à velha e pequenina aldeia, não recolhendo, e agora o lamentamos, muita da informação encontrada sobre a restante freguesia. Confessamos este nosso pecadilho, mas, confessamos, já não temos coragem de voltar à leitura dos velhos jornais figueirenses, para rebuscarmos o que não recolhemos na altura. E dada a explicação, que entendemos necessária, continuemos com a nossa história do associativismo em Tavarede.

         Como todos sabemos, a década de 70 trouxe grandes alterações, não só a Tavarede, como a todo o País. O antigo Paço dos condes de Tavarede havia mudado de proprietário. E a mudança trouxe novos problemas ao Grupo Musical, com o senhorio a querer a sua saida e sem querer fazer quaisquer obras de conservação, ressentindo disso o imóvel, com o inevitável aumento de degradação.

         Em Agosto de 1971, a colectividade festejou os seus sessenta anos de existência. Mais uma colectividade de grandes serviços prestados à cultura popular que vai comemorar o seu aniversário: o Grupo Musical e de Instrução Tavaredense. Com as suas actividades bastante restringidas, nem por isso o Grupo Musical deixa de ter jus à homenagem que lhe é devida.
         Programa das festas: 22 de Agosto – às 8 h. alvorada e saída de uma fanfarra que percorrerá as ruas de Tavarede; às 12 h. exposição da sede; às 22 h. sessão solene e posse aos novos corpos gerentes, seguindo-se um baile de gala abrilhantado pelo seu magnífico conjunto privativo Estrelas do Mondego. Como se nota, o programa era bastante simples e o seu conjunto musical privativo já pertencia ao passado.

         Na Sociedade, de depois de nova fantasia, História e... histórias de Tavarede, o grupo cénico voltou aos dramaturgos portugueses e apresentou, na sua sede, A forja. Alves Redol faz girar o conflito que separa e isola e destrói os personagens, uma família, à volta de três temas centrais: a perseguição cega de um objectivo materialista com fim único da vida (no caso de “A Forja”, a compra de uma casa); a decepção da mulher perante o homem outrora amado, decepção que ela pretende ultrapassar centrando o amor de mãe no filho mais novo, a esperança na vida renovada; e o inelutável fracasso da vida se o homem abandona o seu destino em mãos alheias (mesmo que sejam as do próprio pai).
         O dramatismo da peça adensa-se porque Redol lança mão não de um mas de dois sentimentos profundos: o materialismo cego do pai e o excessivo amor da mãe.
         Redol segue a lição de Balzac, que introduziu na literatura o tema da importância vital do dinheiro na vida.
         Balzac concentra, digamos, o amor ao dinheiro e aos três filhos numa personalidade, no pai, em Goriot. Redol serve-se de dois personagens para dar figuração àqueles sentimentos. O “père Goriot” é mais humano: o amor às filhas vence as preocupações do dinheiro. Talvez propositadamente Redol só dá rapazes ao casal desgraçado, assim isolando ainda mais o “pai”.
         Mas a densidade do dramatismo da peça de Redol ressalta ainda num traço próprio da alma portuguesa, a visão exagerada do trágico da existência, que nos atraía Unamuno, o genial espanhol, um dos estrangeiros que mais nos admirou e amou.
         Este elemento, a visão exagerada do trágico da existência, é sabiamente explorado por Redol.
         A intensidade dos sentimentos, o apego do pai à forja, fonte do dinheiro que permitirá a compra da casa; a decepção da mãe, que a leva a centrar toda a capacidade de amar no filho mais novo, e quase cega para o plano inclinado em que a família, como um bloco, rola para a destruição, desenham estas figuras a traços fortemente marcados, diremos mesmo, excessivamente acentuados.
         Redol fez uma peça para portugueses, é certo, para gente que, como o “pai” da “Forja”, aceita o trágico da existência, a força do destino, como ele repete. Mas não terá Redol perdido, dalguma maneira, o sentido da medida? Não terá ele ido um pouco além? Não quererá Redol, com este apontar da resignação ao trágico da existência, criticar, mostrar o absurdo deste sentimento? Redol parece dizer, através do “pai”, que o homem deve ser indiferente ao destino, deve lutar sempre, como um homem autêntico. A morte do “pai” às mãos da “mãe” parece deixar crer que o homem será castigado se viver alheio a tudo, ao seguir cegamente uma paixão. O “pai” sente que fracassou por se ter fixado, abandonado a vida de vagabundo. Também aqui Redol aflora um tema trágico: o das paixões amorosas intensas, fonte de infelicidade.
         No fundo, este entrechocar de temas e sugestões, Redol talvez queira dizer que na miséria, entre gente esmagada por dívidas, sacrificada pelo trabalho, mal alimentada, a luta acaba na auto-destruição. O trabalho só por si, bem no fundo, nada resolve, é inútil o esforço.
         Todavia, esses excessos de Redol, homem de sentimentos profundos, homem que talvez se revoltasse contra uma visão dominadora do trágico da existência, não prejudica a peça. Sentimo-nos opressos pelo dramatismo de Redol, mas não nos cansamos.
         A arte de Redol surge a toda a luz no perdão que concede aos pais, na simpatia pelo povo, o povo humilde, por vezes endurecido por séculos de miséria e opressão.
         Certo que Redol humaniza por vezes a ferocidade dos dois desgraçados. Fá-lo, porém, episodicamente, em lances propositadamente rápidos. O ambiente bravio e tormentoso em que o conflito se desenvolve, em tom ora colérico ora lamentoso, ameniza-se por vezes instantâneamente, como acontece nas grandes tempestades. Mas desde logo a cólera, o ódio, o desencanto retomam os seus direitos. Tudo isto é dado com uma arte, um poder, uma força latente que a encenação de José Ribeiro nos parece ter servido fielmente.
         As aproximações e os distanciamentos das figuras estão bem marcados, conjuga-se bem o texto com a movimentação dos personagens.
         Se aqui e ali se notam certas hesitações, uma ou outra rigidez de atitude, tudo incipiências próprias duma primeira representação, a movimentação das figuras, o ritmo global da representação foi francamente bom. As aparições da “Morte” são momentos de grande beleza rítmica e de intensa densidade emocional.
         A presença de Violinda Medina garantia, a priori, um êxito para a peça; mas a actuação de sábado excedeu a expectativa. Uma notável representação da excelente amadora, que se elevou há muito tempo a um nível invulgar. Todo o dramatismo da figura difícil e atormentada de uma mãe vergastada por sentimentos contraditórios é transmitido com sobriedade, delicadeza e verdade.
         João Medina, no pai, enquadra-se num esquema simples, que aceitamos, porque o sentimos emanado do texto e da encenação, mas a que pomos algumas reticências. Não poderia haver menos rigidez nas atitudes, com mais frequência? O clima geral da peça, o vigor do texto, a força da movimentação dos personagens não permitiriam atenuar a dureza das atitudes individuais?
         Mas, digamo-lo sem reservas, Violinda e João Medina quase se igualam no vigor, na firmeza com que nos deram uma noite de teatro de aplaudir.
         José Medina e João de Oliveira Júnior, dois dos quatro filhos, souberam também acompanhar o nível da representação. E nisto está o seu melhor elogio. João de Oliveira Júnior é o elemento consciencioso de sempre, a um tempo sóbrio e brilhante, e José Medina sustentou bem – e valorizou-as – cenas que poderiam afrouxar nas mãos de um amador menos bem dotado.
         Os restantes surgem como peças secundárias mas nem por isso menos essenciais ao equilíbrio do conjunto. Que nunca tivessem claudicado com manifesta evidência, é mérito deles e duma encenação cuja mão firme e sabedora está sempre presente.
         As virtudes desta peça de Redol e deste grupo de magníficos amadores poderiam levar-nos mais longe, mas cremos que estas linhas serão suficientes para dar ideia da valia do espectáculo de sábado em Tavarede, e que o público soube compreender.

         De vez em quando, a chamada ‘grande imprensa’ lembrava-se da nossa humilde aldeia. Nesta ocasião foi a revista Radio & Televisão. Tavarede é uma pequena aldeia a dois passos da Figueira da Foz. Aparentemente, nada a distingue das que lhe são vizinhas: todas as manhãs os tavaredenses partem para o trabalho no campo, no escritório, na fábrica, na oficina e todas as tardes regressam cansados. Mas Tavarede é uma aldeia única, não só no concelho da Figueira da Foz como, talvez, no País: há quase 70 anos que o teatro constitui ali um poderoso factor de educação e de cultura.
         A Sociedade de Instrução Tavaredense vai comemorar, no mês de Janeiro, o seu 68º aniversário. Com um espectáculo de teatro, como sempre, já que a Sociedade é o orgulho da aldeia e o teatro entrou de há muito na sua vida. Que espectáculo será, ainda não se sabe. Mas a despeito do tempo que falta, ninguém se sente grandemente preocupado. A seu tempo, tudo se resolve e os 40 amadores do Grupo de Teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense, além da confiança cega que depositam no seu director, José da Silva Ribeiro, têm já muita pratica do oficio. Bastará dizer que, para eles, não há temporada: trabalham durante o ano inteiro.
         Aparentemente, Tavarede é uma aldeia como qualquer outra, sem nada que a diferencie. Mas Tavarede tem a Sociedade de Instrução Tavaredense e foi (talvez) a única aldeia do País onde se comemorou a sério o IV Centenário da publicação de “Os Lusíadas”.
         Tudo começou há meses, quando o director dos Serviços Culturais da Câmara Municipal da Figueira da Foz, dr. Vítor Guerra, solicitou à Sociedade de Instrução Tavaredense que organizasse um espectáculo comemorativo da publicação de “Os Lusíadas” e que o Município ofereceu ao público da Figueira. Em pouco mais de três meses, José Ribeiro montou um espectáculo que envolve todos os componentes do grupo. A população da Figueira da Foz viu e aplaudiu, mas a estreia fez-se, como sempre (“Tudo o que fazemos é para o povo de Tavarede”, afirma José Ribeiro), em Tavarede.
         A primeira parte é constituída pela representação do “Auto de El-Rei Seleuco”, de Camões. Como actores principais, participam um barbeiro, quatro estudantes do ensino secundário, dois empregados de escritório, um serralheiro e um carpinteiro. A segunda parte é constituída pela representação de uma evocação (“Camões e Os Lusíadas”), da autoria de José Ribeiro. 
         Nomes? Talvez não valha a pena. Cita-se apenas como exemplo João Medina, de 40 anos de idade, barbeiro de profissão. Actor amador há cerca de 25 anos, desempenhou o papel de “El-Rei Seleuco” e foi este o primeiro contacto que teve com a obra de Camões. Sempre que pode, lê o seu livro, como aliás todos os outros, que frequentam assiduamente a biblioteca da Sociedade. Mas a maior parte das suas horas livres vai para o teatro, e João Medina tem hoje uma experiência que lhe permite falar de Shakespeare, de Molière, de Gil Vicente, de tantos outros que a grande maioria da população rural portuguesa desconhece inteiramente.
         Referindo-se ao Grupo de Campolide, assinalava recentemente Joaquim Benite numa entrevista ao “Jornal de Noticias” que “o grupo encara o teatro como uma tribuna, cumprindo-lhe duas funções: a lúdica e a cultural, uma e outra inseparáveis”.
         Estas palavras são válidas para o Grupo de Teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense. Ali, a função lúdica e a função cultural vivem lado a lado, interpenetram-se, confundem-se até. Não se trata apenas de representar para passar o tempo. Como me dizia um dos actores mais velhos, João Cascão (68 anos conservados), o que se procura fazer é teatro educativo.

         Camões? Pois venha lá Camões. E durante os ensaios todos falaram de Camões – da sua vida e da sua obra, da época em que viveu, do seu lugar na História da Literatura, de tudo o que dissesse respeito a Camões – sob a orientação segura de José Ribeiro, que aos 78 anos de idade (a completar no próximo dia 18) fala e trabalha com a alegria e o vigor de um jovem.

Sem comentários:

Enviar um comentário