sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O Associativismo na Terra do Limonete - 111

         Mestre José da Silva Ribeiro faleceu em Setembro de 1986. José da Silva Ribeiro morreu no sábado à noite, após prolongada agonia. Da sua pequena aldeia, a infausta notícia, logo ali conhecida, espalhou-se pela cidade e por toda a parte, causando fundo pesar. Tavarede, a Figueira, o País mesmo, perderam um homem de valor que deu à Cultura popular, ao Teatro especialmente, à instrução e à beneficência, e ao jornalismo também, todo o fulgor da sua inteligência. José Ribeiro era figura carismática em Tavarede. A obra por ele realizada na Sociedade de Instrução Tavaredense jamais poderá ser esquecida, tão grande ela foi. A popular colectividade, sempre fiel ao seu nome é, na verdade, um marco da Cultura do povo na sua terra. A José Ribeiro se deve em grande parte, na maior parte, essa obra em que participou toda a população, pois raro será o habitante que não tenha pisado o seu palco, onde se revelaram talentos na Arte de Talma, alguns de verdadeiros artistas, como Violinda Medina, Maria Teresa de Oliveira, Vitalina Lontro, Maria Natália Santos, João da Silva Cascão, Fernando Reis, António Jorge da Silva, João de Oliveira Júnior, Manuel Nogueira e outros, à frente do vasto rol de amadores, a ultrapassar as três centenas, sem contar com outros colaboradores nos ensaios de peças musicadas, na construção, pintura e montagem de cenários, na iluminação, no guarda-roupa, etc.
         O ilustre e já saudoso tavaredense era um homem de Teatro, dedicado ao estudo da Arte e da obra dos seus mais talentosos Mestres, tanto nacionais como estrangeiros, bastando citar entre eles Gil Vicente, Almeida Garrett, Camões, D. João da Câmara, Marcelino de Mesquita, Ramada Curto, Carlos Selvagem, Alves Redol, Luís Francisco Rebelo, Shakespeare, Molière, Bernstein, Luigi Pirandelo, Arthur Miller, Alejandro Casona, Diego Fabri e muitos outros, dos quais foram representadas as mais famosas peças em espectáculos realizados em Tavarede e noutras localidades do país, algumas vezes a favor de obras de beneficência, os quais só num período de 25 anos, de 1954 a 1977 atingiram o número de 394.
         Ele próprio dedicou ao Teatro algumas das suas produções literárias, nalgumas das quais se reproduzem as mais belas cenas da vida da sua pequenina aldeia e sua história, sendo de sua autoria também o livro “50 Anos ao Serviço do Povo”, e o derradeiro que intitulou “75 Anos... e Caminhando”, dedicado a sua mãe, “àquela bondosíssima e corajosa Mulher que, ainda moça, com seu marido pisou as tábuas do palco no teatrito do sr. Conde, no Paço de Tavarede e no teatro do Terreiro, do sr. João Costa”; àquela Mulher, continua ele na sua dedicatória, “que na sua dolorosa viuvez manteve heroicamente, mesmo à custa de rudes trabalhos em vindimas alheias, a desprotegida família”.
         Além da sua longa actividade como jornalista, nas colunas de “A Voz da Justiça”, que foi um dos mais prestigiosos jornais do país, José da Silva Ribeiro exerceu outras funções, sempre intimamente ligadas ao sector da instrução, tanto na antiga Sociedade de Instrução Popular como na Escola Industrial e Comercial de Bernardino Machado, de que foi secretário, e membro da Comissão Auxiliar do Jardim-Escola João de Deus.
         Foi expedicionário a África, por ocasião da I Grande Guerra.
         Em breves traços, a biografia de um homem que foi autodidacta mas se distinguiu pela sua grande inteligência e pelo trabalho ao serviço da grei. A quem as colectividades do concelho muito devem e em muitas das quais, também, fez ouvir a sua palavra fluente, falando, quase sempre, de Teatro e da sua força cultural.
         O Governo, por proposta do ex-Presidente da República, General Ramalho Eanes, distinguira-o com a Comenda da Ordem da Liberdade, e a Câmara Municipal também o homenageou ao conceder-lhe a Medalha de Ouro da Cidade. A última homenagem pública foi-lhe prestada no encerramento do I Congresso de Teatro Amador da Figueira da Foz, onde o seu nome foi indicado para apadrinhar um Centro de Apoio aos agrupamentos de Teatro.
         José da Silva Ribeiro nasceu, como já se disse, em Tavarede no dia 18 de Novembro de 1894, vai fazer portanto 92 anos. Faleceu no dia 13, na sua casa da rua que hoje tem o nome de “A Voz da Justiça”. Filho de Gentil da Silva Ribeiro e de Emília Coelho de Oliveira, era irmão do sr. Gentil da Silva Ribeiro, residente no Porto, o qual, encontrando-se acidentalmente ausente em Espanha, só no dia seguinte ao do funeral chegou a Tavarede.
         O funeral do ilustre jornalista, político e homem de Teatro realizou-se no domingo à tarde para o cemitério local, onde, por sua expressa determinação, o corpo foi inumado na campa de sua mãe. Cumpriram-se os seus desejos de ter um funeral “modesto, de pessoa simples que não pobre de todo”. O féretro ia coberto com as bandeiras Nacional e da Sociedade de Instrução Tavaredense e a chave da urna foi conduzida pelo sr. Dr. Carlos Estorninho, grande amigo do falecido.
         No préstito incorporaram-se, além do sr. Presidente da Câmara Municipal e de muitas outras pessoas, entre elas algumas de representação oficial, directores de diversas colectividades, com os seus estandartes envolvidos em crepes, um piquete dos Bombeiros Voluntários, outro em representação da PSP, etc. Não houve, no momento do corpo baixar à terra, nenhuma oração fúnebre em homenagem ao homem que, por muito tempo, será lembrado como benemérito da cultura e da instrução do povo.

         Organizado pelo Lions Clube da Figueira da Foz, foi levada a efeito uma sessão, na qual foi homenageada a memória do nosso ilustre conterrâneo. E aqui recordamos dois depoimentos de dois dos seus velhos amigos, Zé Penicheiro e Gomes Gil. A minha homenagem e recordação de um Homem de Cultura e Amigo a quem muitos de nós devemos o exemplo da luta pela liberdade, da dedicação sem limites pela sua Terra e da Obra cultural e imensa que nos deixou.
         Guardo comigo a sua última carta quando de uma Exposição de Pintura sob o tema “A Mulher e a Figueira” em Setembro de 1981.
         “... Você sabe muito bem que eu sou semi-analfabeto na Arte da Pintura. E se distingo um óleo dum guache, uma aguarela duma têmpera, e se distingo o retrato da caricatura, ignoro como se praticam os milagres da paleta. Tal como o meu rústico aldeão-cavador, que sente que a leira é boa para aquela qualidade de couve que planta e ignora totalmente a análise da terra que amanha.
         Esta convicção da minha insuficiência não me impediu de lhe dizer atrevidamente a minha admiração e preferência pela belíssima paisagem da Serra que descobri, envergonhada, quase escondida atrás da porta de entrada: pintura muito bela, ainda de estilo naturalista, já distanciada da forma caricatural, em que a figura humana como a paisagem nos são dadas sob o domínio omnipotente das linhas rectas, no estilo pujante e expressivo, na forma e na cor, que é a maneira vigorosa do Zé Penicheiro.
         Meu caro Zé Penicheiro, eu tenho aqui, na minha frente, belíssimas caricaturas do tempo, aliás não longínquo, em que o seu traço ainda usava, com o mesmo sentido artístico e não menor valor expressivo, a riqueza e a melodia da curva: estou a olhar para a primorosa caricatura do Romeiro, do “Frei Luís de Sousa”, que na emergência representava o nosso pobre Teatro, e da Peixinha, a famosa bruxa de Buarcos; e em frente destes dois admiráveis desenhos, o quadro famoso das duas comadres da má-língua, tão vivas, tão ricas de verdade na coscuvilhice, estupenda caricatura no colorido e no desenho, já mais próximo da técnica em que o Zé Penicheiro se fixou e que está muito notável e exuberantemente documentada na exposição de agora...”.
         Um texto para reflectir e um Amigo para recordar apesar dos breves momentos de encontro na rua ou nos bastidores do seu teatro de Tavarede, pela distância que então nos separava.
         Ontem como hoje ficará sempre bem vivo, para mim, a sua presença. Zé Penicheiro.

         LEMBRANDO JOSÉ DA SILVA RIBEIRO         Em 1977, horas após a minha chegada a Monte Real, converso com um comerciante, já idoso. A conversa incide sobre a Figueira, e logo ele me fala, com entusiasmo, de “A Voz da Justiça” de que havia sido assinante! Aconteceu em Monte Real; poderia ter acontecido em Tomar, em Lisboa ou em muitas terras desse Portugal além por onde havia assinantes de a V.J. (leia-se, A Voz da Justiça)
         Era a V.J., um “jornal honrado” no dizer de J.R. (leia-se, José Ribeiro) seu principal responsável (O seu nome figurou no cabeçalho do jornal, como secretário de redacção, desde 2 de Janeiro de 1920 até 10 de Julho de 1937), que não gozava das simpatias de Salazar que, não contente com o seu despótico encerramento, ainda ordenou, ou permitiu o saque das suas oficinas.
         Pegando na Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, lemos que JR, agora desaparecido, além de jornalista foi também publicista, conferencista, autor teatral e combatente em Moçambique de 1916 e 1919.
         Como conferencista, muitas foram as vezes em que as suas palavras fluentes e ricas de conteúdo se fizeram ouvir, deixando no ar a suave mas penetrante ironia queirosiana, ou a verdade dita um pouco à Gil Vicente (não nos referimos, é claro, àqueles vocábulos que Gil Vicente e o nosso povo usava e usam e de que ele lançava mão, com certa frequência, durante os ensaios, segundo se diz).
         No que se refere a teatro, eis alguns números:
         De 1916 a 1953 a Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT), sempre sob a sua orientação artística (excepto nos períodos em que teve de se ausentar para combater em Moçambique ou para gozar a “gentil hospedagem” da PIDE) fez 60 estreias de peças e, duma delas (“O Sonho do Cavador”) de sua autoria, fizeram-se mais de cinquenta representações!
         De 1954 a 1978 a SIT realizou um total de 394 espectáculos, sendo 249 em Tavarede e 145 noutras localidades (Vila Real, Porto, Aveiro, Coimbra, Leiria, Tomar, Lisboa, etc.)
         Em 1959, a SIT concorreu ao Concurso de Arte Dramática organizado pelo SNI. Apesar de JR não ser de modo algum simpático aos olhos de Salazar e seus sequazes, foram-lhe atribuídos os seguintes prémios:
         = Prémio Francisco Taborda, para a SIT; Prémio Carlos Santos, para o ensaiador; Prémio Maria Matos, 1ª interpretação feminina; Prémio Chaby Pinheiro, 1ª interpretação masculina e 2 Menções honrosas.
         Mas a sua acção na SIT não se resumiu ao teatro: de 1904 a 1942, funcionou na sua sede uma escola nocturna. Dessa escola e do teatro assim falou o tavaredense António da Silva Broeiro:
         “Eu sou o que a Sociedade de Instrução Tavaredense de mim fez. Devo-lhe tudo. Comecei lá em baixo na escola da noite, onde me ensinaram a ler, escrever e contar. Só à noite podia ir à escola: teria ficado analfabeto se não fosse a escola nocturna. Depois trouxeram-me para o teatro, ensinaram-me a compreender o que lia, ensinaram-se a conversar, a ouvir. Aqui fui instruído e educado”.
         Através do teatro produziu JR , na sua linda Tavarede uma obra de mérito múltiplo:
         Educou os seus conterrâneos, criando-lhes o gosto pelo teatro sério de autores nacionais e universais;
         Escreveu peças de temática local, através das quais foi ensinando a história de Tavarede e consciencializando as pessoas para problemas locais (a situação da agricultura, a poluição do ribeiro, a urbanização da Quinta do Paço, a ruína do velho palácio, etc).
         A enciclopédia referida, fala-nos ainda de JR combatente em Moçambique. Vamos saltar essa folha da sua vida para dedicarmos algumas palavras a um incomensurável filão aurífero: a sua qualidade de cidadão altruísta, desdenhoso dos bens materiais.
         Esse homem que tantas vezes repetia Almeida Garrett a propósito de Manuel Fernandes Tomás “... e morreu pobre”, nunca correu atrás dos bens materiais, sempre se esforçando por ganhar o seu pão até ao fim do caminho. Após o 25 de Abril, numa entrevista que António Medina Júnior, director do “Jornal de Sintra” (e tavaredense) lhe fez para o seu jornal, quando lhe perguntou se ele e as demais vítimas do roubo da Tipografia Popular iam reivindicar os seus direitos, logo JR lhe respondeu “Eu não peço nada, não preciso de nada – nem dos mortos, nem dos vivos”.
         Não sendo católico, nunca se aproveitou do palco para atacar a Igreja. (Quantos dos nossos intelectuais teriam a mesma atitude?).
         António Vítor Guerra, que foi fervoroso católico praticante, escrevia em 2 de Agosto de 1973 (antes do 25 de Abril) no jornal “A Voz da Figueira”:
         “Sem embargo de divergências ideológicas, político-religiosas, prendem-me a José da Silva Ribeiro laços de particular afecto, cujas raízes aprumadas, são velhas de decénios. De resto, a sua vida, plena de virtudes humanas, quer no âmbito familiar, quer no sector público, espraia-se em miragens, stricto sensu que não deixam de impressionar quantos, vivamente, em convívio mais directo, íntimo ou social, haja de com ele contactar.
         Bem merece de todos, sem discrepância, este ilustre tavaredense.
         No meu caso, porém, acresce a circunstância de ser devedor a José da Silva Ribeiro, de um somatório de atenções e gentilezas, singularíssimas, que há muito me tornaram insolvente consigo, e bem assim os departamentos culturais da cidade, a que durante anos estive ligado e a que ele tem dado achegas de tomo”.

         Este é o meu modesto contributo para que José da Silva Ribeiro seja melhor conhecido e mostrar o meu reconhecimento a quem sempre me cumulou de gentilezas e me franqueou a sua biblioteca. (A.M.Gomes Gil)

Sem comentários:

Enviar um comentário