sexta-feira, 17 de abril de 2015

O Associativismo na Terra do Limonete. - 124

         É certo que já iam muito longe os tempos do analfabetismo, não sendo mais precisas as antigas escolas nocturnas, que tantos dos nossos antepassados frequentaram e onde aprenderam a ler e a escrever... As actividades recreativas e desportivas eram mais apelativas na cidade vizinha... Mas, a sua função social, o convívio e a confraternização tinham nas associações locais lugar privilegiado. Daí o surgirem, com certa regularidade certos apelos. ... Quem conhece as várias associações e colectividades, verifica que apesar de ser um grupo mais restrito a desenvolver o trabalho, na maioria das freguesias rurais, a adesão das pessoas em torno dos projectos e das diversas actividades é maior do que nas freguesias urbanas.
         Tavarede é uma freguesia urbana, que cresceu muito ao ser escolhida por muitos casais para ali viverem. Da antiga Tavarede ficou um núcleo mais restrito e é nesse núcleo que se encontram as pessoas que trabalham e dinamizam as colectividades.
         Torna-se necessário que estas se adaptem às novas realidades, saibam cativar os novos residentes e estes possam participar mais nas diversas actividades, enraizando-se no local onde vivem. Por vezes a vida familiar e profissional o não permite, noutras é um certo comodismo e desconhecimento.
         A integração numa comunidade será maior, quanto melhor a conhecemos e nela interviemos. No caso concreto de Tavarede, a SIT, tal como as outras colectividades podem desempenhar essa função integradora.

         Mas, retomemos as nossas recordações. Para o aniversário de Janeiro de 2003, o grupo cénico da SIT orgasnizou um programa aliciante. Reviveu Gil Vicente e apresentou uma nova peça da autoria de Luiz Francisco Rebelo, respectivamente, o Velho da Horta e Páginas arrancadas.

         Quanto a Gil Vicente, e como nos recordamos, tinha sido apresentado, poucos meses antes, em actuações inéditas na nossa terra, com a apresentação de fragmentos de obras suas em diversos locais da aldeia. Gil Vicente não é um desconhecido da nossa casa: é, pelo contrário, nossa grata visita desde há muitos anos, a quem sempre temos procurado honrar e servir com dignidade.
Na actividade teatral da Sociedade de Instrução Tavaredense patenteia-se o culto do fundador do Teatro em Portugal e revela-se o propósito de levar Gil Vicente ao povo, mostrando-o vivo, através das suas obras, sobre as tábuas do palco. Isto se verifica através da breve resenha que segue:
A primeira peça vicentina dada ao público tavaredense foi o Auto da Mofina Mendes, representado em 1946. Neste período decorrido de quase 20 anos, repetidamente Gil Vicente subiu ao palco de Tavarede. Ali se representaram, além do Auto da Mofina Mendes já referido, o Auto da Barca do Inferno, Todo o Mundo e Ninguém (do Auto da Lusitânia), Auto Pastoril Português, Farsa do Velho da Horta, a tragicomédia Dom Duardos (que propositadamente se traduziu), o monólogo da Visitação e Pranto de Maria Parda. – In Programa do V Centenário do Nascimento de Gil Vicente.
Não podia a Sociedade de Instrução Tavaredense deixar de assinalar o V Centenário da 1ª representação Vicentina (Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação). Neste espírito e com o programa que temos o prazer de apresentar aos Associados, resolveu a Direcção, com o seu grupo cénico e o apoio da Câmara Municipal e Junta de Freguesia celebrar tão importante data do Panorama Cultural Português”.
À noite houve espectáculo na sede com a representação da peça “O Velho da Horta”. Antes da representação o Professor Doutor José Bernardes proferiu uma palestra sobre “Teatro Vicentino”.
“Feliz terra, Tavarede, que tem entre os seus filhos amantes da Arte de Talma que não esquecem o nascimento dessa educadora ocupação a que se chama Teatro. Teatro Profissional e Teatro de Amadores são designações que normalmente se associam ao tipo de teatro representado com menor ou maior exigência e com maior disponibilidade de meios, criando também diferentes expectativas. Acontece, porém, que na Figueira da Foz, mais propriamente em Tavarede se apresenta teatro que, quanto a nós, já não se enquadra naquelas duas designações. Não são profissionais de teatro os tavaredenses da SIT, mas, também, não se faz Teatro Amador. Ali a norte de São Julião da Figueira da Foz, no Condado de Tavarede, na Vila de Tavarede, na Freguesia de Tavarede, - façam as senhoras da SIT o favor de escolher a designação, formal ou não, que mais lhes agradar – vive-se o Teatro! Ama-se o Teatro! Então o que por lá se vê, frequentemente, é Teatro de Amantes! Quase se podia dizer que o Grupo Cénico da SIT – dirigentes e restantes elementos – vive em união de facto com o Teatro se é que não há por lá bigamia. Por isso, quando se vai a Tavarede assistir a uma peça representada pelo Grupo do Mestre José Ribeiro, - já ausente mas sempre presente – há a convicção de que não se vão ver profissionais, mas há também a certeza, já quase exigência, de que se irá ver algo de muito bem feito na arte de representar, ainda que possa ser qualquer peça invulgar ou menos comum. É isto que nos apraz escrever depois de termos visto os tavaredenses trazerem o “Teatro para a rua”, para as ruas de Tavarede, na tarde de sábado passado. Gil Vicente, o pai do Teatro Português, andou por lá e até fez parar o trânsito à hora anunciada. (Não sabem o que perderam os figueirenses que ali não foram recuperar-se da maior desilusão nacional deste século, ocorrida com o tão mediaticamente cantado desporto de pintos descontrolados. Adiante!...). Trouxeram para a rua o Teatro para comemorar o V Centenário de 1ª representação Vicentina e as apresentações fizeram nos largos, não muito largos, diga-se, da velha urbe, perante muita assistência numa linguagem teatral, com laivos dum arcaico português, conseguindo até fixar a atenção dos mais jovens, certamente ainda mais encantados pelo guarda-roupa, pelas piruetas e os esgares que as representações exigiam. Não é nossa intenção escalpelizar aqui tudo o que vimos, mas não queremos deixar de referir a felicidade da escolha de locais como: o ribeiro de Tavarede onde estava o Demo e a sua Barca; a zona fronteira ao pequeno jardim onde está perpetuada a Professora Maria Amália e onde uma impressionante Maria Parda, com uma incrível caracterização, teve espaço para se expandir, vis a vis com a assistência; a proximidade do Paço de Tavarede, em obras de restauro, dando, simbolicamente, à Violinda Medina possibilidades de assistir ao que se representou, porque está ali perpetuada com uma placa a dar nome à artéria central da terra, e pôde ver actuar o futuro do teatro tavaredense: uns jovens que por lá cavalgaram em duas bestas, uma delas invisível, na Farsa de Inês Pereira; e indo terminar, o teatro de rua, com a representação do Monólogo do Vaqueiro, no melhor local, em frente da sede da colectividade, tendo na primeira fila, fila com lugar único e exclusivo, Mestre Zé Ribeiro – Alma Mater do Teatro em Tavarede, na Figueira da Foz. Não se ficaram por aí as comemorações porque, à noite, houve palestra de grande nível com a duração qb pelo Dr. José Bernardes que, falando sem pauta, evidenciou, com uma nota pessoal, quão valioso lhe foi o contacto com o teatro de Gil Vicente naquela casa, antes do seu reencontro na escola – acrescentamos convictos e beneficiários: os contactos na vida antes da escola são vitais, acreditem. Depois seguiu-se mais uma peça vicentina “O Velho da Horta” pelos Amantes de Tavarede e podíamos terminar escrevendo apenas mais isto: Viveu-se uma vez mais Teatro em Tavarede. Mas, não! Queremos acrescentar que nesta peça, a que assistiu a “comitiva real”, demos conta duma “senhora alcoviteira”, com uma bem audível e clara voz, que se destacou, sem que os restantes comparsas, e particularmente o entroncado e já encaracolante hortelão, perdessem o seu mérito. E por aqui nos ficamos.

         Sobre o espectáculo de gala do referido aniversário, aqui copiamos uma das notícias encontradas. Integrada nas comemorações do 99º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT) iniciadas em 11 de Janeiro e que tiveram o seu momento alto na Sessão Solene realizada no passado dia 19, acto muito prejudicado pelo mau tempo que afastou muitos dos habituais frequentadores, realizou-se neste último sábado mais uma noite de teatro com a representação das peças “O Velho da Horta” (de Gil Vicente) e “Páginas Arrancadas” (de Luís Francisco Rebello), “duas peças portuguesas distantes no tempo cerca de 500 anos, que nos remetem para dois mundos diferentes, o riso e o choro, o cómico e o trágico lado a lado, o teatro nas suas duas grandes vertentes”, duas escolas de representação, numa demonstração inequívoca de que em Tavarede a arte de representar está preparada para os desafios dos mais evoluidos conceitos do novo teatro.
         Ninguém ignora que Gil Vicente se tornara “pessoa de família” no Teatro de Tavarede onde o saudoso Mestre José Ribeiro o “chamava a palco” sempre que era preciso dar uma lição, genuína, de bem o representar. Desde Violinda Medina, que na “pele” de Maria Parda ganhou jus, a nível nacional, à honrosa distinção de melhor intérprete daquela figura no nosso país, a muitos outros nomes grandes da Escola de Tavarede que serviram de modelo até a grupos profissionais.
         Com este “Velho a Horta” voltou agora ao de cima o virtuosismo herdado da escola de Mestre José Ribeiro com a interpretação superior de Rogério Neves a mostrar-nos um velho à medida de Gil Vicente, genuinamente à século XVI, até na naturalidade do uso das roupagens, gestos e salameques tão característicos da idade média, interpretação modelar só ao alcance de um amador de excepção a um nível que qualquer profissional não enjeitaria. Peça onde os restantes intervenientes mostraram a arte e o talento de emprestar ao enredo o “sal” que contribuiu para o sucesso – traduzido em muitos aplausos da assistência! – deste “O Velho da Horta”, transplantado, com mestria, do original.
         Gil Vicente não poderá estar ausente do centenário, a comemorar no próximo ano, nem a deixar de coabitar o palco centenário por muitos mais anos.
         Preenchendo a 2ª parte do espectáculo, a peça de Luiz Francisco Rebello, “Páginas Arrancadas” é um “psico drama” de outra concepção de teatro, assente num diálogo mais intelectualizado e de aproveitamento político em que os personagens se duplicam num jogo de mudanças de situação em que os meios técnicos assumem um papel fundamental – caso de mudanças de cena através de jogo de luzes, espelhos e transparências, sem necessidade do tradicional descer do pano ou mudanças de cenários, particularidade a exigir muitos conhecimentos técnicos e grande eficiência dos bastidores (palmas para os responsáveis por tão melindrosa operação!) – e sobretudo, a nível de encenação e direcção de cena, pela forma como souberam dar resposta às exigências desta nova metodologia de teatro de vanguarda, um teatro diferente a quem muitos apontam o dedo como responsável pela menor afluência de pessoas ao teatro.
         É por isso que queremos deixar aqui um aceno de muito apreço pela coragem de Ilda Simões e Fernando José Romeiro (encenadora e director de cena) pelo alto risco que correram ao apresentar uma peça de tão difícil “digestão” e a forma meritória como souberam “dar a volta ao texto”. Graças, sem dúvida, ao traquejo invulgar das “três estrelas da companhia” – os consagrados José Medina, Fernando Romeiro e António Barbosa – pela sagacidade como souberam tornear a “intelectualidade” dos textos atribuidos aos Jorge 1, Jorge 2 e Cristóvão, classe que constituíu a chave que “deu a volta” àquele complicado “registo psicodramático”, graças também à preciosa prestação de serviços dos restantes figurantes, com destaque para o “mau da fita” (Toni) a quem coube a “fava” de uma intervenção “chocante” com selo de “palavrão” tão característico do tal teatro de vanguarda mas que ele soube “adoçar” com um bom desempenho.

         Não fôra o talento destes amadores de fina água e talvez esta peça de “risco” não tivesse a aceitação que teve.

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