É certo que já iam muito longe os
tempos do analfabetismo, não sendo mais precisas as antigas escolas nocturnas,
que tantos dos nossos antepassados frequentaram e onde aprenderam a ler e a
escrever... As actividades recreativas e desportivas eram mais apelativas na
cidade vizinha... Mas, a sua função social, o convívio e a confraternização
tinham nas associações locais lugar privilegiado. Daí o surgirem, com certa
regularidade certos apelos. ... Quem
conhece as várias associações e colectividades, verifica que apesar de ser um
grupo mais restrito a desenvolver o trabalho, na maioria das freguesias rurais,
a adesão das pessoas em torno dos projectos e das diversas actividades é maior
do que nas freguesias urbanas.
Tavarede
é uma freguesia urbana, que cresceu muito ao ser escolhida por muitos casais
para ali viverem. Da antiga Tavarede ficou um núcleo mais restrito e é nesse
núcleo que se encontram as pessoas que trabalham e dinamizam as colectividades.
Torna-se
necessário que estas se adaptem às novas realidades, saibam cativar os novos
residentes e estes possam participar mais nas diversas actividades,
enraizando-se no local onde vivem. Por vezes a vida familiar e profissional o
não permite, noutras é um certo comodismo e desconhecimento.
A
integração numa comunidade será maior, quanto melhor a conhecemos e nela
interviemos. No caso concreto de Tavarede, a SIT, tal como as outras
colectividades podem desempenhar essa função integradora.
Mas, retomemos as nossas recordações.
Para o aniversário de Janeiro de 2003, o grupo cénico da SIT orgasnizou um
programa aliciante. Reviveu Gil Vicente e apresentou uma nova peça da autoria
de Luiz Francisco Rebelo, respectivamente, o Velho da Horta e Páginas
arrancadas.
Quanto a Gil Vicente, e como nos
recordamos, tinha sido apresentado, poucos meses antes, em actuações inéditas
na nossa terra, com a apresentação de fragmentos de obras suas em diversos
locais da aldeia. Gil Vicente não é um
desconhecido da nossa casa: é, pelo contrário, nossa grata visita desde há
muitos anos, a quem sempre temos procurado honrar e servir com dignidade.
Na actividade
teatral da Sociedade de Instrução Tavaredense patenteia-se o culto do fundador
do Teatro em Portugal e revela-se o propósito de levar Gil Vicente ao povo,
mostrando-o vivo, através das suas obras, sobre as tábuas do palco. Isto se
verifica através da breve resenha que segue:
A primeira
peça vicentina dada ao público tavaredense foi o Auto da Mofina Mendes,
representado em 1946. Neste período decorrido de quase 20 anos, repetidamente
Gil Vicente subiu ao palco de Tavarede. Ali se representaram, além do Auto da
Mofina Mendes já referido, o Auto da Barca do Inferno, Todo o Mundo e Ninguém
(do Auto da Lusitânia), Auto Pastoril Português, Farsa do Velho da Horta, a
tragicomédia Dom Duardos (que propositadamente se traduziu), o monólogo da
Visitação e Pranto de Maria Parda. – In Programa do V Centenário do Nascimento
de Gil Vicente.
Não podia a
Sociedade de Instrução Tavaredense deixar de assinalar o V Centenário da 1ª
representação Vicentina (Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação). Neste
espírito e com o programa que temos o prazer de apresentar aos Associados,
resolveu a Direcção, com o seu grupo cénico e o apoio da Câmara Municipal e
Junta de Freguesia celebrar tão importante data do Panorama Cultural
Português”.
À noite houve
espectáculo na sede com a representação da peça “O Velho da Horta”. Antes da
representação o Professor Doutor José Bernardes proferiu uma palestra sobre
“Teatro Vicentino”.
“Feliz terra,
Tavarede, que tem entre os seus filhos amantes da Arte de Talma que não
esquecem o nascimento dessa educadora ocupação a que se chama Teatro. Teatro
Profissional e Teatro de Amadores são designações que normalmente se associam
ao tipo de teatro representado com menor ou maior exigência e com maior
disponibilidade de meios, criando também diferentes expectativas. Acontece,
porém, que na Figueira da Foz, mais propriamente em Tavarede se apresenta
teatro que, quanto a nós, já não se enquadra naquelas duas designações. Não são
profissionais de teatro os tavaredenses da SIT, mas, também, não se faz Teatro
Amador. Ali a norte de São Julião da Figueira da Foz, no Condado de Tavarede,
na Vila de Tavarede, na Freguesia de Tavarede, - façam as senhoras da SIT o
favor de escolher a designação, formal ou não, que mais lhes agradar – vive-se
o Teatro! Ama-se o Teatro! Então o que por lá se vê, frequentemente, é Teatro
de Amantes! Quase se podia dizer que o Grupo Cénico da SIT – dirigentes e
restantes elementos – vive em união de facto com o Teatro se é que não há por
lá bigamia. Por isso, quando se vai a Tavarede assistir a uma peça representada
pelo Grupo do Mestre José Ribeiro, - já ausente mas sempre presente – há a
convicção de que não se vão ver profissionais, mas há também a certeza, já
quase exigência, de que se irá ver algo de muito bem feito na arte de representar,
ainda que possa ser qualquer peça invulgar ou menos comum. É isto que nos apraz
escrever depois de termos visto os tavaredenses trazerem o “Teatro para a rua”,
para as ruas de Tavarede, na tarde de sábado passado. Gil Vicente, o pai do
Teatro Português, andou por lá e até fez parar o trânsito à hora anunciada.
(Não sabem o que perderam os figueirenses que ali não foram recuperar-se da
maior desilusão nacional deste século, ocorrida com o tão mediaticamente
cantado desporto de pintos descontrolados. Adiante!...). Trouxeram para a rua o
Teatro para comemorar o V Centenário de 1ª representação Vicentina e as
apresentações fizeram nos largos, não muito largos, diga-se, da velha urbe,
perante muita assistência numa linguagem teatral, com laivos dum arcaico
português, conseguindo até fixar a atenção dos mais jovens, certamente ainda
mais encantados pelo guarda-roupa, pelas piruetas e os esgares que as
representações exigiam. Não é nossa intenção escalpelizar aqui tudo o que
vimos, mas não queremos deixar de referir a felicidade da escolha de locais
como: o ribeiro de Tavarede onde estava o Demo e a sua Barca; a zona fronteira
ao pequeno jardim onde está perpetuada a Professora Maria Amália e onde uma
impressionante Maria Parda, com uma incrível caracterização, teve espaço para
se expandir, vis a vis com a assistência; a proximidade do Paço de Tavarede, em
obras de restauro, dando, simbolicamente, à Violinda Medina possibilidades de
assistir ao que se representou, porque está ali perpetuada com uma placa a dar
nome à artéria central da terra, e pôde ver actuar o futuro do teatro
tavaredense: uns jovens que por lá cavalgaram em duas bestas, uma delas
invisível, na Farsa de Inês Pereira; e indo terminar, o teatro de rua, com a
representação do Monólogo do Vaqueiro, no melhor local, em frente da sede da
colectividade, tendo na primeira fila, fila com lugar único e exclusivo, Mestre
Zé Ribeiro – Alma Mater do Teatro em Tavarede, na Figueira da Foz. Não se
ficaram por aí as comemorações porque, à noite, houve palestra de grande nível
com a duração qb pelo Dr. José Bernardes que, falando sem pauta, evidenciou,
com uma nota pessoal, quão valioso lhe foi o contacto com o teatro de Gil
Vicente naquela casa, antes do seu reencontro na escola – acrescentamos
convictos e beneficiários: os contactos na vida antes da escola são vitais,
acreditem. Depois seguiu-se mais uma peça vicentina “O Velho da Horta” pelos
Amantes de Tavarede e podíamos terminar escrevendo apenas mais isto: Viveu-se
uma vez mais Teatro em
Tavarede. Mas , não! Queremos acrescentar que nesta peça, a
que assistiu a “comitiva real”, demos conta duma “senhora alcoviteira”, com uma
bem audível e clara voz, que se destacou, sem que os restantes comparsas, e
particularmente o entroncado e já encaracolante hortelão, perdessem o seu
mérito. E por aqui nos ficamos.
Sobre o espectáculo de gala do referido aniversário,
aqui copiamos uma das notícias encontradas. Integrada
nas comemorações do 99º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT)
iniciadas em 11 de Janeiro e que tiveram o seu momento alto na Sessão Solene
realizada no passado dia 19, acto muito prejudicado pelo mau tempo que afastou
muitos dos habituais frequentadores, realizou-se neste último sábado mais uma
noite de teatro com a representação das peças “O Velho da Horta” (de Gil
Vicente) e “Páginas Arrancadas” (de Luís Francisco Rebello), “duas peças
portuguesas distantes no tempo cerca de 500 anos, que nos remetem para dois
mundos diferentes, o riso e o choro, o cómico e o trágico lado a lado, o teatro
nas suas duas grandes vertentes”, duas escolas de representação, numa
demonstração inequívoca de que em Tavarede a arte de representar está preparada
para os desafios dos mais evoluidos conceitos do novo teatro.
Ninguém
ignora que Gil Vicente se tornara “pessoa de família” no Teatro de Tavarede
onde o saudoso Mestre José Ribeiro o “chamava a palco” sempre que era preciso
dar uma lição, genuína, de bem o representar. Desde Violinda Medina, que na
“pele” de Maria Parda ganhou jus, a nível nacional, à honrosa distinção de
melhor intérprete daquela figura no nosso país, a muitos outros nomes grandes
da Escola de Tavarede que serviram de modelo até a grupos profissionais.
Com
este “Velho a Horta” voltou agora ao de cima o virtuosismo herdado da escola de
Mestre José Ribeiro com a interpretação superior de Rogério Neves a mostrar-nos
um velho à medida de Gil Vicente, genuinamente à século XVI, até na
naturalidade do uso das roupagens, gestos e salameques tão característicos da
idade média, interpretação modelar só ao alcance de um amador de excepção a um
nível que qualquer profissional não enjeitaria. Peça onde os restantes
intervenientes mostraram a arte e o talento de emprestar ao enredo o “sal” que
contribuiu para o sucesso – traduzido em muitos aplausos da assistência! –
deste “O Velho da Horta”, transplantado, com mestria, do original.
Gil
Vicente não poderá estar ausente do centenário, a comemorar no próximo ano, nem
a deixar de coabitar o palco centenário por muitos mais anos.
Preenchendo
a 2ª parte do espectáculo, a peça de Luiz Francisco Rebello, “Páginas
Arrancadas” é um “psico drama” de outra concepção de teatro, assente num
diálogo mais intelectualizado e de aproveitamento político em que os
personagens se duplicam num jogo de mudanças de situação em que os meios
técnicos assumem um papel fundamental – caso de mudanças de cena através de
jogo de luzes, espelhos e transparências, sem necessidade do tradicional descer
do pano ou mudanças de cenários, particularidade a exigir muitos conhecimentos
técnicos e grande eficiência dos bastidores (palmas para os responsáveis por
tão melindrosa operação!) – e sobretudo, a nível de encenação e direcção de
cena, pela forma como souberam dar resposta às exigências desta nova metodologia
de teatro de vanguarda, um teatro diferente a quem muitos apontam o dedo como
responsável pela menor afluência de pessoas ao teatro.
É
por isso que queremos deixar aqui um aceno de muito apreço pela coragem de Ilda
Simões e Fernando José Romeiro (encenadora e director de cena) pelo alto risco
que correram ao apresentar uma peça de tão difícil “digestão” e a forma
meritória como souberam “dar a volta ao texto”. Graças, sem dúvida, ao traquejo
invulgar das “três estrelas da companhia” – os consagrados José Medina,
Fernando Romeiro e António Barbosa – pela sagacidade como souberam tornear a
“intelectualidade” dos textos atribuidos aos Jorge 1, Jorge 2 e Cristóvão,
classe que constituíu a chave que “deu a volta” àquele complicado “registo psicodramático”,
graças também à preciosa prestação de serviços dos restantes figurantes, com
destaque para o “mau da fita” (Toni) a quem coube a “fava” de uma intervenção
“chocante” com selo de “palavrão” tão característico do tal teatro de vanguarda
mas que ele soube “adoçar” com um bom desempenho.
Não
fôra o talento destes amadores de fina água e talvez esta peça de “risco” não
tivesse a aceitação que teve.
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