sábado, 9 de maio de 2015

Tavarede - A Terra de meus Avós - 5

Tavarede – anos quarenta…
  







Nasci em Tavarede, numa pequena casa da rua Direita, um pouco abaixo do Largo do Paço, nos já distantes anos trinta do século passado. Aqui me criei e vivi a minha infância e a minha juventude, tempos felizes e despreocupados, até ao ano de 1958, quando, por motivos profissionais, abalei para Lisboa. Quando regressei, anos mais tarde, fixei a residência familiar na Figueira. Mas, e quase que diariamente, as nossas visitas a Tavarede sucediam-se. A família mais chegada continuava a aqui residir e, se eles desejavam a presença familiar, nós igualmente nos sentíamos aqui muito bem. Afinal de contas eramos filhos da terra…

Talvez por isso, não deixo de ter uma certa apreensão ao começar a recordar os meus tempos de infância. Mas, e isso quero desde já afirmar, não é por uma questão de saudosismo. É verdade que, uma vez por outra, não poderei deixar de sentir uma certa “saudade”, mas, no caso, será mais correcto falar em “sentimentalismo”.

         Desde sempre, e isso mesmo tenho observado nas minhas recolhas, os tavaredenses tiveram, e têm, fama de serem uns “sentimentalões”, especialmente em questões de bairrismo. Claro que eu não sou a excepção à regra. Mas, e disso estou bem convicto, esta viagem aos meus tempos de menino e moço vai saber-me muito bem.

         Para me não alongar em demasia, e porque o período escolhido é mais do que suficiente para os meus propósitos, vou viajar até à década dos anos quarenta do século passado, digamos, portanto, mais de sessenta anos atrás. Certamente que algumas das minhas lembranças me levarão fora daquele período, mas evitarei fazê-lo o mais possível.

         Começo por recordar, uma vez mais, que a terra do limonete era, naquele tempo, muito diferente daquilo que é nos nossos dias. Curiosamente, pode dizer-se que a aldeia mudou mais em vinte ou trinta anos, do que nos seus primeiros nove séculos de existência. Vista, por exemplo, da velha estrada de Mira, o casario de Tavarede apresentava uma forma de um triângulo quase perfeito, bem marcado nos seus vértices: Igreja, Paço e Terreiro. Bastará atentar na antiquidade daqueles três edifícios para confirmação do que referimos.

         Circunscrevendo a aldeia, e começando pelo lado nascente, tínhamos a quinta da Mentana, onde, nos princípios daqueles anos, ainda vivia o seu proprietário, João Gaspar de Lemos   Amorim, poeta que tão bem cantou a nossa    terra e a sua vida agrícola. Depois, contornando o burgo até ao Terreiro, tínhamos a quinta do Nabal, da parte de
cima do cemitério, o início das Azenhas, o Carriço e a encosta até ao Pezo, seguindo-se depois, para poente, a caminho do Paço, os terrenos do dr. Cruz, a quinta do Pezo e


a quinta de José Duarte. Do lado sul, havia a quinta do Paço, com a sua frondosa mata, na Várzea, e até ao Largo da Igreja, ficavam as verdejantes e viçosas hortas do Serrado e do Quintal do Ferreira, com todos os bocadinhos amorosamente amanhados.

         Fora destes limites, uma ou outra casa. Os lugares da Simôa, Nabal, Azenhas, Pezo, Senhor da Arieira e Várzea, ainda se encontravam perfeitamente destacados. Estes eram os mais próximos mas, como referi, ainda isolados do velho burgo.

         Naquele tempo a vida na aldeia era bastante calma e serena. Os maiores ruídos que se ouviam, era de manhã bem cedo e à noitinha, e eram feitos pelos carros de bois que atravessavam a povoação a caminho das fazendas, muitas vezes carregados de estrume e dos apetrechos e alfaias agrícolas. No regresso, traziam os produtos colhidos da terra fecunda e o pasto para alimento do gado. Muitos destes carros, também frequentemente iam de madrugada à estação do caminho de ferro, em busca de algum rendimento no carrego das encomendas vindas nos comboios e que se destinavam ao comércio e armazéns da cidade.

É inevitável a recordação da passagem dos carros de bois gandarezes que, da estrumeira da Várzea ou das areias de Buarcos, levavam o “adubo” tão necessário ao cultivo das suas terras areentas. Às vezes formavam uma enorme caravana que, vinda de Buarcos, atravessava pachorrentamente a aldeia, pela velha rua Direita, subindo depois, com esforço, pela estrada do Saltadouro a caminho da Cova da Serpe e lugares mais distantes.

         Quando passavam por Tavarede, corríamos todos à espreita para ver se caíam alguns pilados com os balanços dos carros, ao percorrerem a rua esburacada. Já conhecíamos os melhores sítios e mal víamos um pilado a correr no chão, logo saltávamos a apanhá-lo, apesar dos ralhos do dono. Depois de cozidos, eram uma bela merenda.

         Também manhã cedo, algumas carroças puxadas a burricos, atravessavam a aldeia a caminho da Figueira, levando enormes carradas de hortaliças e flores ao mercado, de que eram os principais fornecedores. Muitas mulheres, que tinham menos produção, transportavam, em cestas que levavam à cabeça, as couves e as novidades apanhadas na véspera, pela fresquinha. Tinham fama as couves de Tavarede. “Não surgem no mercado da Figueira – nem haverá por essa bola do mundo – hortaliças e novidades mais apaladadas e gostosas. Que aquilo é campo bendito – que Deus fadou para regalo e gozo dos eleitos”, escrevia-se no boletim do Turismo, em 1945.

         E quanto a flores, lembro um dito do saudoso professor Doutor Joaquim de Carvalho, que dizia “as mulheres de Tavarede, com o seu bom gosto, têm uma arte especial para construírem um ramo de flores”.

         Também pelas manhãs e ao entardecer, a aldeia era sacudida da sua modorra, com a passagem dos dois rebanhos de cabras que então cá existiam. No Paço, albergava-se o rebanho do sr. Marcelino, proprietário e talhante na Figueira, e que tinha como cabreiro ao seu serviço, o Diogo, da Chã. Um pouco adiante da fonte, no caminho da Várzea, vivia Joaquim Lopes, mais conhecido por Joaquim Tarouco, que igualmente tinha um rebanho de cabras que, com o filho, Evaristo, levava a apascentar aos valados ou pousios dos arredores. Na Figueira, no Bairro Novo, eram bem conhecidos os pregões do Joaquim Tarouco, quando ali ia vender leite.

         As noites eram silenciosas. E no verão, nas quentes noites estivais, era grande a concorrência de pessoas à fonte, onde gozavam de uma fresquidão muito agradável, depois de se refrescarem com a água pura e cristalina que, sem cessar, caía dos seus canos em leve murmúrio. Outros iam até ao Largo da Igreja, onde se sentavam no velho muro, respirando gostosamente a fresca brisa, olorosamente perfumada a limonete, enquanto, tantas vezes, ouviam deliciados os doces trinados dos rouxinóis e dos pintassilgos, que ainda abundavam por ali, nos salgueirais do ribeiro.

         Ao recordar isto, vem à minha memória a “caça” que os rapazes faziam aos pirilampos, que voejavam à nossa volta num constante pisca-pisca. Apanhávamos quantos podíamos. Chegados a casa, metíamo-los num copo, voltado com a boca para baixo, acompanhados de um pequeno punhado de pedras de sal. De manhã, era certo. Lá estava a pequena moeda que, trabalhando o sal, os pirilampos haviam produzido durante a noite. Que ingenuidade a nossa!


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