sábado, 27 de junho de 2015

Tavarwede - A terra de meus avós - 12

Bailaricos e arraiais


         “Dentro em breve, o arraial provinciano tinha início. O folclore das nossas aldeias, ali genuinamente representado. Os seus descantes e bailados, embriagavam-nos de prazer. Assistimos às danças em arraial.
         Como são diferentes os bailados provincianos dos atrevidos e parisienses gostos das nossas salas lisboetas! Que harmonia nas suas voltas, nos passos, na elegância das raparigas!
         E ao som de música que desconhecíamos os trechos, contemplávamos embevecidos o ritmo uníssono das danças provincianas. Que lindo o arraial das nossas aldeias! Que típico tudo aquilo, que verdadeiramente português! Sim, Portugal é verdadeiramente o “jardim da Europa” um mimo de encanto e formosura”.

         Retirei este pequeno retalho de uma reportagem de uma visita de sintrenses à Figueira e a Tavarede e que, numa volta pelos arredores, assistiram a um arraial popular na vizinha Brenha, em Setembro de 1935.

         É um bom início para uma pequena recordação dos arraiais e dos bailaricos na nossa terra. Eram festas levadas a efeito, normalmente no verão, que traziam sempre momentos de grande alegria a todos, novos e velhos.

         Ainda tenho uma ideia, mas muito vaga, dos arraiais montados nos largos do Paço e do Forno. Eram locais relativamente pequenos para o efeito. Além disso, o aumento do trânsito certamente desaconselhava a ocupação destes largos com as habituais ornamentações.

         O Grupo Musical teve o empréstimo do enorme espaço da quinta do senhor José Duarte, mesmo defronte da sua sede. A entrada era feita pelo portão da quinta, entre a casa e uma enorme figueira, que não escapava à nossa tentação de rapazes a caminho da escola, quando dela pendiam os seus frutos maduros.

         Lá em cima, frente a uns barracões onde eram guardadas as alfaias agrícolas, era montado o pavilhão. A vedação do recinto era feita com grades de Madeira, emprestadas pela Câmara Municipal. Formando quadrado, eram levantados, de tantos em tantos metros, mastros pintados a branco. No meio do recinto, erguido majestosamente nos ares, o mastro principal e, à sua volta, era montado o coreto, com espaço suficiente para nele se instalar a orquestra.
           Enquanto os mastros laterais levavam a meio um escudo de madeira e no cimo um pendão feito de tecidos coloridos, o mastro principal era ornamentado, no seu topo, com uma armação de madeira, coberta de louro e heras.
     
        
Nós, os rapazitos, acompanhávamos os adultos quando iam apanhar braçadas de ramos de loureiro e pernadas de heras, que eram utilizadas para se fazerem as verdes e farfalhudas cordas que, de mastro em mastro, davam a volta ao arraial e ao coreto. Dos cantos partiam para o mastro principal as cordas de papel colorido, feitas em festão, elos ou bandeirinhas. Junto das cordas de louro eram estendidas as gambiarras, cedidas pelos Serviços Municipalizados, que iluminavam todo o recinto.

         Num dos lados era instalado o bufete. O balcão era feito com umas tábuas compridas, suportadas por uns prumos espetados no chão, ou por algumas pipas vazias. Num cavalete era colocado o pipo com o vinho “do lavrador”, constantemente solicitado para encher as picheiras de barro vidrado. Os copos, de vidro grosso, era “lavados” num alguidar que, bem depressa, ficava com a água roxa e não branca. Claro que não faltavam outras bebidas, entre as quais os célebres pirolitos, com as garrafinhas fechadas pela bolinha de vidro. Os petiscos eram pouco variados, mas sempre havia qualquer coisa para comer e fazer ”lastro” a mais uns copos. Anos mais tarde, começaram a fazer a saborosa dobrada com feijão branco e o caldo verde.

         Noutro lado, era montada a quermesse, com uma estante em degraus, coberta por coloridas colchas e cheias de prémios tentadores. Sobre a tábua que, em volta, fazia de balcão, estavam os cestinhos com as rifas muito bem enroladinhas. Os bilhetes eram baratos, mas a verdade é que por um premiado haviam cinco ou seis brancos, branquinhos, como a cal da parede, dizíamos nós.

         Também existiam outros divertimentos como, por exemplo, as barracas de ”tiro”, com as espingardas de pressão de ar, para chumbo ou setas. O alvo eram pequenas pastilhas de gesso, penduradas numa tábua.

         Eram sempre bastante concorridos estes arraiais. A orquestra tocava animadamente, convidando mesmo a um “pésinho de dança”. Mas os números mais desejados, em especial pelos mais idosos, eram as célebres danças de roda. Mal se ouviam os primeiros acordes destes números, logo acorriam a formar a longa roda, à volta do coreto. Recordo-me de duas espécies destas danças. A primeira parte era igual, com os pares de mãos dadas, a darem pequenos passos ao compasso da música. Na segunda parte, numa das danças, os pares, sempre de mãos dadas, iam ao centro, voltavam e rodopiavam duas vezes, para a direita e outras duas ao contrário; na outra dança, largavam as mãos do par e, às palminhas, recuavam dois pares atrás, cruzavam e regressavam ao lugar, para rodopiaram com o par. Sei que havia outras danças idênticas, mas não as sei descrever. Aliás, não é nada fácil explicar estas danças, mas era bonito ver a alegria e a satisfação com que dançavam estes bailados. Algumas vezes, lá saía o vira mandado… Não admira que os sintrenses tenham ficado deslumbrados com os nossos arraiais.

         A um canto do recinto, e para dar um ar ainda mais alegre, acendia-se uma enorme fogueira, que se mantinha acesa durante todo o bailarico. Também a apanha da lenha era coisa do agrado da rapaziada. Lá íamos todos, caminho do Peso e da Serra acima, olhando os valados, à procura de ramos secos e, sempre que possível, arrancar os piteirões secos, que,  puxando pelo comprido tronco, arrastávamos até ao lugar da sua queima… Estas coisas nunca esquecerão…

         Na Sociedade, primeiro foi no largo do Terreiro e depois no terreno anexo, onde posteriormente se construíu o pavilhão desportivo, também eram realizadas idênticas festas. Aqui recordo-me que, quando se começaram a utilizar as aparelhagens sonoras, utilizavam uma velha grafonola que, passando discos bem antigos, atroava os ares a lembrar aos tavaredenses o bailarico que ali iria ter lugar à noite.

         Estes arraiais eram realizados no verão. Durante os restantes meses, havia bailes nas sedes das colectividades. A Sociedade, mais vocacionada para o teatro, dava poucos bailes, até porque era bem trabalhoso o montar e desmontar do estrado por cima da plateia! No Grupo Musical, quase todos os domingos, havia “matinées dançantes”.

         Também eram sempre bastantes concorridas estas diversões, e não só pelas raparigas e rapazes de Tavarede e lugares vizinhos, pois aqui vinha muito pessoal da Figueira e outras terras. O “Lúcia-Lima”, conjunto privativo do Grupo Musical, era o que mais vezes actuava.

         De vez em quando as colectividades organizavam festas especiais, a que davam sempre nome sugestivo. Então o salão era ornamentado com originalidade, com motivos relacionados ao título escolhido para a festa. Nessas ocasiões, e para atraír o público, contratavam orquestras de fora. Caixeiros, Ginásio, Naval, Quiaios Clube, Instrução e Recreio, Taborda, além do Lúcia-Lima, eram as mais usuais. Recordo, igualmente, o famoso Tivoli-Jazz, de Montemor-o-Velho, com as suas camisas encarnadas, o Café Central, de Cantanhede, de verde, e o nosso vizinho Os Pardais, dos Vais, que optaram pelo amarelo.

         Não quero deixar de recordar que, nestes bailaricos, era costume, a meio do número anterior ao intervalo, apelarem para “os cavalheiros levarem as damas ao bufete”. Tinha que ser e lá ia o tradicional pires de arroz doce e o refrescante pirolito que, embora bem baratos, davam sempre um bom rombo nas nossas frágeis algibeiras.

         E de bailaricos e arraiais chega de recordações. Mas não me esquece que, menino e moço, foi no arraial do sr. José Duarte que aprendi a dançar. Já lá vão tantos anos…


Tavarede no Teatro - 3

“Em busca da Lúcia – Lima”


         Foi no sábado 11 de Abril de 1925 que, pode dizer-se, se abriu a primeira página deste livro da história de “Tavarede no Teatro”. O prólogo, em 1912 e 1913, havia sido relativamente curto, aliás como devem ser todos os prólogos, mas agora já muito material passava a estar disponível.

         Pois naquele sábado houve mais um espectáculo no palco da Sociedade de Instrução Tavaredense. Representou-se a opereta “Em busca da Lúcia-Lima”, em 3 actos e da autoria do distinto poeta e escritor figueirense João Gaspar de Lemos Amorim, que havia uns anos, e quando regressou de África, escolheu a nossa terra para viver, tendo para isso adquirido a Quinta da Mentana, que confrontava com o Largo da Igreja, com a estrada para a Chã até ao ribeiro do Pereiro, e com a estrada do Saltadouro. Ali tinha mandado construir uma vivenda no alto de uma pequena colina, rodeada de frondosas árvores.

         Foi ele que escreveu a referida opereta, a qual foi recheada com 23 números de música, original e coordenada pelo notável amador musical figueirense António Maria de Oliveira Simões, grande colaborador do teatro tavaredense durante toda a sua vida.

         Ao anunciar a sua estreia, o correspondente local de “A Voz da Justiça” escreveu, na edição de 10 daquele mês: “Dizem-nos que pela música, que é lindíssima, com alguns números duma grande beleza e magnífica orquestração, pelo libreto, de entrecho simples mas interessante e com certa cor local, e pela montagem, a representação desta opereta cairá no agrado da plateia figueirense”.

         Parece que, realmente, o público gostou do espectáculo. Antes de entrarmos na análise da peça, o que espero fazer de forma simples mas de maneira a dar a conhecer a mesma, e de alguns apontamentos críticos sobre interpretação e montagem, começo por transcrever um apontamento que encontrei na “Gazeta da Figueira” de 2 de Maio de 1925:

         “Por intermédio do nosso colaborador Raymundo Esteves tivémos a honra de ser apresentados ao ex.mo sr. João Gaspar de Lemos, distintíssimo poeta e auctor da opereta “Em busca da Lúcia-Lima” que ultimamente tem sido representada com agrado no theatro da Sociedade de Instrução Tavaredense.
         Gaspar de Lemos, sem de longe pensar que o estamos entrevistando, vae-nos dando, na sua agradabilíssima conversação, todos os elementos de que carecemos, apenas um pouco ennublados na parte respeitante ao valor da peça, que segundo outros é bem moldada, mas que a sua modéstia, que bem se coaduna com o seu valor, faz ver eivada de erros a que só (expressões suas) a técnica e boa vontade de José Ribeiro e a explêndida música de António Simões, poderiam salvar.
         Descreve-nos a peça. E o assumpto, certamente bem tratado, é tão curioso, tão interessante, tem tanto theatro, tamanha beleza, que a gente logo vê quanta modéstia o auctor tem falando da sua peça do modo ligeiro como o fez.
         Começamos então a sentir verdadeiro desgosto por a não termos visto em scena e Gaspar de Lemos dá-nos umas leves esperanças de que ella seja aqui representada em récita de homenagem à Santa Casa da Misericórdia, e volta-nos a falar com entusiasmo do valor da música, da inteligente encenação, do seu explêndido desempenho que representa uma verdadeira consagração para José Ribeiro pelo triunfo obtido d’aquelles rudes e pouco cultos amadores que por única arma de combate para vencer tanta dificuldade, possuem a boa vontade e o grande desejo de progredir.
         Que Gaspar de Lemos nos perdoe a traiçãosinha e fique certo que aguardamos ocasião de podermos satisfazer o desejo de ver na ribalta a sua “Em busca da Lúcia-Lima”.

         Na semana seguinte é publicada uma carta de Gaspar de Lemos respondendo:

         “Sim, senhores, a cilada foi bem planeada e bem levada a effeito, pondo por isso em evidência que o Raymundo Esteves, o estratégico do ardil, mostra natural vocação para bandoleiro. Não quer isto dizer que o cúmplice entrasse subalternamente no caso como Pilatos no Crédo. Mas estão perdoados! Fiquem, porém, certos de que ao largar os dois e ao afastar-me do local do sinistro, já no meu espírito eu tinha aprehensões e suspeitas da nefaria trama. E sem laivos de rancor, sem sombras d’azedume ou leve ressentimento sequer, dei logo por bem empregado os poucos minutos gastos por nós trez a palrar sobre o assumpto provocador da cilada. Como bem comprehendem, esta deu ensejo a que eu prestasse homenagem bem convictamente ao maestro António Simões, pessoa da minha maior estima, cuja nítida percepção das situações e fino sentimento artístico lhe deram azo a ornar o libretto com deliciosa e captivante música, e bem assim ao José Ribeiro, admirável rapaz que realisou prodígios d’ensinamento na declamação e marcação da peça, manifestando mais uma vez a sua capacidade comprehensiva da technica theatral, não deixando escapar as mais subtis minucias, e tudo isto conjugado com heróica paciência e uma vontade férrea que contrariedade alguma conseguiu quebrantar.
         Exaro aqui o meu agradecimento sincero pelas boas palavras que me dispensa e que se me afiguram excessivas. Não ignoro, é certo, que nas produções literárias d’esta natureza o libretto (enredo e afabulação) constitue  quasi um simples pretexto para exhibir música e indumentária, já vê, pois, meu caro sr. Sobral, que para o êxito da opereta Em busca da Lúcia-Lima e agrado com que nas trez récitas ella foi ouvida, eu contribuí com diminuta quota. Longe de mim o propósito de querer adornar-me com vistosas plumas de enfatuado pavão. Desde o primeiro ensaio d’apuro reconheci logo que o valiosíssimo concurso dos meus amigos e collaboradores evitaria o fracasso da peça. E d’esta vez fui profeta na minha terra. De resto nunca tive pretensões a lançar a público, já não digo uma obra prima (crédo!) no género mas qualquer cousa com o fim d’engodar a notoriedade.
         Creia-me com muita consideração seu creado e admirador, J. Gaspar de Lemos”.

         Houve mais espectáculos em Tavarede nos dois sábados seguintes, e no mês de Julho, foi o grupo cénico tavaredense dar uma representação, com esta peça, no teatro do Parque-Cine, na Figueira, cuja receita reverteu a favor do Hospital da Santa Casa da Misericórdia local.

         Sobre este espectáculo, são muito interessantes as críticas publicadas nos três jornais então publicados na Figueira. E se em “A Voz da Justiça”, relativamente à peça, se diz “era esta opereta, de entrecho simples, com muita cor local, alguns tipos trazidos para o palco com felicidade, e em cujos três actos as brilhantes qualidades de poeta de Gaspar de Lemos se afirmam com pujança. Os versos da Lúcia-Lima fogem ao ramerrão das rimas forçadas, têm sentimento, têm princípio, meio e fim, são espontâneos, ajustando-se perfeitamente à acção da peça e à oportunidade em que são cantados”, e na “Gazeta da Figueira” se escreve “numa opereta, vulgarmente, há apenas um motivo ligeiro, um leve fio de entrecho, para se fazer ouvir música, “Em busca da Lúcia-Lima” tem mais do que isso, tem seu enrêdo, começo, meio e fim, tudo afinado e certo, como é próprio do talentoso autor”, já em “O Figueirense” não se alinha no mesmo estilo e escreve “a peça não está mal feita e melhor posta em cena, mas nasce dum disparate carnavalesco e quase todo o seu enredo é um disparate completo. Não é admissivel, nem mesmo em teatro, que um anúncio carnavalesco publicado num jornal de província, trouxesse a Tavarede, e de aeroplano, dois comerciantes brasileiros, para verem uma mulher que o já referido anúncio dizia ser formosa... Como se no Brasil não houvesse mulheres bonitas!...”.


sábado, 20 de junho de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 11

         “Passaram agora sob a nossa janela as raparigas do rancho do Maio.
         O rancho do Maio!
         Todos os anos se organiza este cortejo florido. E quando passa nas ruas, deixando no ar o eco das cantigas e o perfume das rosas – é Primavera!
         Quando Abril começa a despedir-se, as raparigas animam-se, combinam, organizam o rancho. E na véspera do dia ansiosamente esperado, pedem às vizinhas, correm aos jardins, vão ao mercado – e levam para casa arregaçadas de flores. Arranjam os trajos. Enfeitam os potes, que desaparecem sob os desenhos caprichosos das rosas e malmequeres. Mal pregam olho durante a noite. E quando a manhã só é adivinhada pelo seu espírito em alvoroço, erguem-se, chamam-se umas às outras, reúnem-se – e as suas vozes fazem a alvorada antes que o chiar das rabecas e o tom-tom dos violões arrepie o ar nos estremeções da afinação.
         E marcham. Estrada fora, marcam em piso leve, airosas e frescas, o compasso da marcha que as suas vozes erguem no espaço, subindo alto, levada muito alto no perfume das flores, até fundir-se na atmosfera da madrugada húmida e ainda pesada dos orvalhos da noite. Sobre as cabeças inquietas levam os potes floridos. Dentro dos peitos arquejantes uma ansiedade, uma aspiração indecisa que toma forma nas suas bocas e é Amor nos seus lábios vermelhos sem pintura...
         ... Cantigas de amor!
         ... E a Vida aparece-lhes clara e transparente como a água das fontes que cai das bicas e canta com elas, luminosa e brilhante como a luz que começa a entornar oiro fluído sobre o azul do céu e o verde tenrinho, muito tenro e muito verde, da planície viçosa.
         Este ano o Abril foi de inverno. Frio e vendaval, chuvas teimosas que não tinham fim. Os rapazes da música não queriam sair: - Tenham juízo, não sejam malucas! Apanhar uma chuvada e ficarmos como pintos...
         Mas elas, enfeitando os cântaros, vendo-se no espelho das flores e recebendo destas a alegria e a certeza da primavera, viam lá a chuva, sentiam lá a chuva, queriam lá saber da chuva!... O 1º. de Maio era sempre o 1º. de Maio. No 1º. de Maio há sempre sol. Elas não acreditam na chuva. E se a chuva vier – há-de desfazer-se ao calor das suas vozes, dos seus corações ansiosos, da sua mocidade ardente. Elas acreditam no 1º. de Maio – e porque acreditam nele, vencem a chuva e vencem a dúvida e o medo dos rapazes das violas que parecem velhos – como o Velho-do-Restelo...
         Passou agora o rancho sob a nossa janela. Lá de cima do céu, que parece mais baixo todo forrado de chumbo, cai uma chuva miúda, muito leve e muito fina, como poeira de prata. Mas não desce além dos telhados, fica-se no ar, suspensa sobre a camada de    som e de perfume que enche a rua numa alvorada de sol.
         ... Os cântaros enfeitados!
         ... E as raparigas dos cântaros!
         Há neste conjunto de flores e gente moça que não sente a chuva e que vence a chuva, qualquer coisa de profundamente simbólico.
         Quantos homens fogem à vida, e não a constroem e não a vivem.
         Quantos não vêem o sol porque se assustam com a chuva?
         Quantos homens poderiam aprender no riso fresco, na chama da vida, na certeza da Primavera destas raparigas que vão lá adiante no cortejo florido dos cântaros, a vencer a dúvida e a edificar por suas mãos o triunfo da sua crença?”.

         Prossigo, agora, com mais uma evocação ainda comemorada nos meus tempos de criança. A tarde da chamada “merenda grande” era de ida aos pinhais onde, sob a sombra acolhedora e fresca, eram comidos alguns petiscos. O pinhal mais frequentado era o da quinta da Borlateira, aos Quatro Caminhos. Com o farnel acondicionado no cesto, lá íamos à procura de poiso onde pudessemos estender a toalha e umas velhas mantas, onde nos sentávamos confortavelmente. Claro que também esta “merenda grande” já era uma pálida amostra das antigas, como se pode adivinhar por este recorte, publicado em 1902.

         “Diz-se, e com razão, que esta vida são dois dias... É um pensamento que não oferece dúvida, e eis porque muito boa gente não perde um momento em que os possa levar regaladamente. Assim, é ver como alguns andam á espreita dos dias de folgança, para gozar e divertirem-se; há uma festarola, lá vão - em massa, cheios de alegria, farnel aviado e ideia fixa no santinho que os arrasta áquela adoração - esquecer por umas horas as tristezas e amarguras da atribulada vida...
E aqui estava eu a começar um banal aranzel, quando afinal o meu intento é falar da merenda grande, que foi na segunda-feira, e que, como é da praxe, atraíu á minha risonha terra bastante gente que gosta da pandega. Isto contaram-mo, porque a pouca sorte não me deu a felicidade daquelas venturosas creaturas...
Mas as locandas animaram-se; por essas quintarolas fora dizem-nos que houve regabofe desmedido; as pequenas alunas da escola oficial cantavam as estopinhas pelas ruas da povoação, cestinho á cabeça, qual deles enfeitado com mais capricho; nas lautas merendas devoradas com apetite á fresca sombra de copadas árvores ou entre o inebriante perfume exalado dos canteiros e vergéis engrinaldados de lindas rosas, ou ainda nas eiras, onde corria brandamente a pura viração do norte, tudo concorreu para deliciar os ditosos visitantes da minha estremecida e bem amada aldeia.

E, a prova, é que ali os brindes sucederam-se com espontaneidade entusiástica, os hips e os hurrahs tomaram um calor delirante, e, para que nada faltasse a similhar os mais alegres e ruidosos festins, chegou-se a reduzir a estilhaços, depois de vazias, as pobres garrafas a que pouco antes se dedicara o mais santo e acrisolado afecto.
A tarde de segunda-feira, pois, devia ter sido memorável para os felizes que podem gastar o seu tempo naquelas folganças. Isto já lá vae há três dias, é certo, mas ah!... a maldita inveja não me deixa sair da mente os dulcíssimos momentos que por aqui se passaram na festejada merenda grande...”.

         Alguns dias santificados pela Igreja, também tinham tradições ou costumes festivos. O dia de quinta-feira santa, da parte da manhã, era grande para nós. Manhã cedo, munidos duma bolsa, daquelas que nossas mães faziam de retalhos de chita, juntávamo-nos em grupo e íamos pedir a “esmola”. Dinheiro, naqueles tempos, era coisa que não havia. Nas mercearias, eram rebuçados, muitas das vezes daqueles que traziam cromos. Numa ou noutra casa lá vinha um punhado de feijão ou de milho e, na maior parte, era um “não pode ser”! Uma casa havia, no entanto, onde tínhamos acolhimento todos os anos: a casa do sr. Leite, ali na Simôa. Havia sempre uma boa mão cheia de avelãs para cada um dos “pedintes”. Na sua quinta, junto ao ribeiro do Pereiro, existiam umas enormes aveleiras e uma boa parte da colheita era reservada para neste dia dar “esmola” à rapaziada que lhe ia bater à porta a desejar uma feliz Páscoa…

         No sábado de Aleluia, algumas vezes, poucas, me recordo de haver alguém que, na rua Direita, içava um Judas, para nós o desfazermos à cacetada, com as canas que íamos arrancar aos valados… No dia seguinte, domingo de Páscoa, era o dia de irmos buscar o folar. Novamente a bolsa de retalhos servia, pelo menos no meu caso, para                                                                                 ir a casa de meu padrinho, onde, além do costumado folar de quatro ovos, me dava sempre uma moeda das maiores.

         Outro dia muito desejado era o de quinta-feira da Ascensão, também conhecido como “o dia da espiga”. Já vinha de longe este costume. Em 1912, a “Gazeta da Figueira” trazia a seguinte notícia: Pela tradição do costume foram ranchos de pessoas pela fresca manhã de quinta-feira de Ascenção colher ás searas raminhos de espigas de trigo e ramadinhas de oliveira para que o ano corrente seja próspero e feliz. Grupos de raparigas entoavam canções alegres fazendo um maravilhoso conjunto com os seus maviosos trinados dos rouxinois e doutros passarinhos que saltitavam nas ramadas das floridas árvores do campo.
         Á tarde merendaram muitas pessoas á sombra saudável de pinheiros e um rancho de raparigas, acompanhado dum grupo musical, foram ás Caldas da Amieira, dançando ali e regressando a Tavarede á noitinha. Ao Bussaco também foi bastante gente daqui”.

         Mais poética, é a notícia que “O Figueirense” publicou em 1928:  “É amanhã, quinta-feira da Ascensão, em que bandos de raparigas moças, de lábios rubros, faces rosadas e olheiras fundas, correm estonteantes, borboleteando em redor das searas como uma nuvem de daninhos e alados pardais, na faina voluptuosa e risonha de colher a Espiga, que depois entrelaçam com as mais belas flores silvestres.
         Cada espiga que vão colhendo é uma esperança que se aglomera no cérebro,  cada flor cortada é um facho de luz mais puro que o sol benfazejo da primavera, que se lhes ilumina a alma e faz tanger a corda mais íntima do seu coração. É, pois, amanhã um grande dia, um dia santo, que até o mais   libertino deve respeitar como o dia da Ascensão do Mártir do Calvário. “Se os passarinhos soubessem…”.”

         A espiga era colhida da parte da manhã e, da parte da tarde, havia saída para os pinhais, para mais uma costumada merenda. Algumas famílias optavam por ir passar o dia às termas da Amieira, onde se realizavam grandes festas, enquanto outras escolhiam uma ida ao Bussaco. Foi ali, aliás, na quinta-feira da Ascensão de 1938, que se fez ouvir, pela última vez,  a tão afamada tuna de Tavarede. É dos poucos costumes e tradições que, embora com diminuta concorrência, ainda se mantém na nossa terra.

         No primeiro caderno contei, também, alguma coisa sobre o S. Martinho. É interessante, contudo, o facto de que, sendo S. Martinho o orago da nossa freguesia, só há relativamente poucos anos, comparativamente ao longo período da história da terra do limonete, aqui tenha começado a ser festejado religiosamente.

No entanto, e segundo muitos escritos encontrados, se o santo não era comemorado religiosamente, não era esquecido nas casas dos tavaredenses. Vejamos uma notícia de Novembro de 1899:
         “Deixai-nos, velho santo, que vos apresentemos aqui reverentemente os nossos respeitosos cumprimentos, pela chegada do dia 11, dia em que o Borda d’Agua regista a vossa passagem pela galeria dos santos.
         Grande data, para as gentes da freguesia de Tavarede, por ser a do dia do seu querido orago! Não lhes passa ela desapercebida, e por isso naquele dia à noite se costuma ouvir aqui o festivo estralejar de grande foguetório, lançado em honra do célebre protector dos amigos do divino Bacho...
         Vê-se muita alegria, fazem-se importantes magustos, dá-se cresta às roliças farinheiras feitas pelas mais recentes matanças de nutridos cevados, e quase todos espicham os vinhos da sua última colheita.
         Aqui tínhamos nós agora uma bela ocasião para atrair a esta localidade milhares e milhares de pessoas, se soubéssemos celebrar ruidosamente o dia de S. Martinho, estabelecendo-se para esse fim um programa deslumbrante que anunciasse grandes procissões, Te Deuns, missas acompanhadas por grandes coros e orquestras, espaventoso arraial, admiráveis fogos de artificio, musicatas, exposição do Deus Bacho em capelas apropriadas, magustos oferecidos ao público, etc., etc., etc. Fizesse-se depois constar por toda a parte esta festança e veríamos se acorriam ou não aqui forasteiros dos cantos mais recônditos do mundo!..Porém, nunca ninguém se lembrou para isso deste pobre santo, que no seu tempo foi tão milagroso, e que hoje tem a sua imagem desprezada e esquecida a um canto da sacristia da igreja de que ele é  patrono, como se tivesse sido um personagem sem importância que não legasse à posteridade, como ele fez, tamanha nomeada.
         Bem se vê que estamos nos tempos da ingratidão...”.

         Como se vê, as comemorações ao nosso santo padroeiro eram comemoradas em casa, à lareira e perto da adega. Encontram-se imensas referências a estas “comemorações”. Considero, das mais interessantes, este comentário, escrito pelo figueirense Raimundo Esteves, em 1940.

         “Se ainda não matou o porco, se o chambaril não entrou em acção, nem a salgadeira tem sal novo, branquinho como bagos de granizo, à certa deve haver um presunto preso pelo cotrunho, à dependura da trave mestra da adega, ou guardado na arca um queijo do outro ano, do de codea forte e polpa amarelada, rijo e a esboroçoar-se, daquele que deixa os beiços mordidos de secura…

                   Pelo S. Martinho
                   Prova o teu vinho…
                   Se ele te agradar,
                   Torna-o a provar…

         - Vá seu Compadre, que um dia não são dias! Este São Martinho faz um formigueiro nas goelas, que até parece que um homem acabou agora duma sacha rija, por Junho ardente…
         Ergue-se o copo à transparência. Lindo palhete! Tem tons de topázio! E uma auréola cor de cravo moço, daqueles que as cachopas poem sobre os seios, na noite santa de S. João… Primeiro, a fazer a cerimónia, leva-se com geito aos lábios o licor divino, com uma unção quase religiosa, quase espiritual. Bate-se o líquido nos beiços, a tomar-lhe bem o travo. Masca-se. Depois, escorre pela língua, com um estalido seco no céu na boca. Pisca-se o olho maroto. Franze-se o nariz e a testa. Baloiça-se com a cabeça. Nova golada. O mesmo rito solene. Ergue-se de novo o copo. Mira-se à luz. Agita-se o vinho de forma a sujar bem os rebordos. Engolipa-se outro sorvo. Está completa a prova. Agora é de virar, - que provar não é beber!
         O magusto é tradicional por esta época do ano. Em lares mais fartos, o magusto é pretexto para ceata de restolho, que mete bacalhau cozido com batatas, couves, cebolas, ovos e azeite novo, quase cru, com um acentuado sabor ao fruto que o deu… Se já se fez a matança, vai uma orelhada para pessoa de mais consideração e respeito, e para o resto da companhia febras de churrasco, ou linguiça arrancada do fumeiro da lareira, onde as carumas e as cepas da poda  lhe deram um sabor e um aroma preciosos.
         O pichel anda numa roda viva, de mão em mão. No brazido, de um bom toro de oliveira, ou raizeiro de carvalho velho, que o fogo consome lentamente, entre áscuas, como bichas de rabiar, - estoiram as castanhas de entre as cinzas. Tiram-se em arranques de coragem. Peneiram-se as unhas escaldadas para esfrearem mais depressa. Se surge uma “Filipina”, vão gritinhos de prazer: - Quem quer ser minha comadre?! … E ás vezes é com uma castanha assim que estoira a castanha na boca a qualquer mancebo desprevenido das artimanhas diabólicas das moças casadoiras!”.

         Em Novembro de 1957 o “velho” tavaredense, Aníbal Nunes Cruz que, durante muitos anos residiu  em Anadia, onde exerceu actividade profissional, resolveu recordar o S. Martinho. Escreveu, então, no jornal “O Figueirense”:

         “Preside aos destinos da nossa freguesia o orago São Martinho, que se venera na igreja paroquial sem que haja memória de ter-se realizado qualquer cerimónia litúrgica em seu louvor.
         No entanto, São Martinho possui bastantes devotos em toda a redondeza da freguesia, que, decerto, muito bem se lembram do seu dia, homenageando-o com as tradicionais ceias em que não faltam as castanhas e a abertura da saborosa água-pé e do bom vinho.
         As famílias – pobres e remediadas – festejam-no numa alegria sã e espirituosa, quantas vezes com preces de saudades dos amigos e dos ausentes, levando a humanidade a conjugar as práticas da confraternização e da amizade como se o divino Padroeiro fizesse esse milagre tão preciso à vida e à religião da família nestes tenebrosos tempos que decorrem.
         São Martinho da nossa terra, que, no seu divino altar, vem, através de tantos anos, presidindo aos solenes baptismos dos tavaredenses, dando a unção da sua doçura para recordar o dia 11 de Novembro sentia-se feliz nessas noites em que estralejavam nos ares os foguetes a anunciar a alegria das famílias e a abertura do vinho novo.
         Louvado seja, São Martinho!...”.

         Era, então, pároco em Tavarede, o reverendo Manuel Joaquim da Costa Ferreira, que desenvolveu notável acção na nossa terra durante os anos em que aqui esteve. Fundou, inclusivamente, em Outubro de 1957, um pequeno jornal a que deu o título de “Notícias de Tavarede”, no qual se propunha contribuir para o alargamento do Reino de Deus na paróquia que lhe havia sido confiada e para cooperar com todas as iniciativas de utilidade local.
        
Talvez que a notícia de Aníbal Cruz lhe tenha despertado a curiosidade, pois o padre Costa Ferreira tomou interesse pelo assunto e, com inteira razão, entendeu que se o patrono de Tavarede era o S. Martinho, o mesmo não deveria continuar esquecido religiosamente.
        
Terá feito diversas investigações e diligências e logo no ano seguinte, 1958, estas festas foram uma realidade. Aliás, o padre Costa Ferreira, muito inteligentemente, aproveitou a oportunidade para obter uma forma de financiar as diversas obras de que a igreja estava bem carenciada. Em Novembro desse ano tiveram lugar as primeiras festas religiosas ao S. Martinho, acompanhadas, claro está, com festas populares. “A Voz da Figueira” relatava, assim, o acontecimento: O povo de Tavarede, por iniciativa do seu pároco, Revº. Manuel Joaquim da Costa Ferreira, vai fazer reviver, este ano, a antiga festa ao orago da freguesia – S. Martinho – cuja imagem, depois de ter estado durante dezenas de anos, retirada do culto e até depositada no Museu da Figueira, acaba de ser restaurada e vai de novo ser colocada no lugar que lhe pertence”.

         Termino estas recordações com uma breve evocação do Natal. Era um dia querido por todos. Dias antes, íamos “roubar” um pequeno pinheirinho para fazermos a árvore de Natal e apanhar musgo para o presépio. A árvore era enfeitada com uns fiosinhos, algodão a fingir de neve e, pendurados por aqui e ali uns pacotitos de bombons e pequenas tabletes de chocolates. Para nós, era um encanto. No dia de Natal, manhã cedo, lá íamos ver se o Menino Jesus não se tinha esquecido de nós. E não. Lá estava alguma roupa e mais alguns chocolates.
         Na véspera, de tarde, era grande a azáfama nas nossas casas, pois chegava a hora de fazer as tortas doces. Farinha, açúcar, abóbora menina, as passas de uvas, nozes, que partíamos aos bocadinhos, pinhões, etc. Quase todas as casas tinham um pequeno forno, que era, então, aquecido a lenha, enquanto a massa levedava. Nessa noite havia sempre teatro e toda a família ia ver. Depois de terminado o espectáculo, regressávamos a casa e eram horas de fritar os filhós, que já estavam prontinhos a ir para a sertã. Polvilhados com açucar amarelo e acompanhados por uma enorme caneca de café de cevada, era a consoada da maior parte das famílias tavaredenses.



Tavarede no Teatro - 2

         Em Janeiro de 1911, a Sociedade de Instrução Tavaredense, para comemoração do seu sétimo aniversário, levou a efeito um novo espectáculo. Recolhi esta notícia do jornal “A Voz da Justiça”, do dia 31 daquele mês e, embora não informe qual foi o programa apresentado, surpreendeu-me bastante na parte que vou transcrever:

“Foi um magnifico serão, fechando pela exibição d’um trabalho de José da Silva Ribeiro, a que nós damos bastante valor. É um pequeno drama e uma grande lição que oxalá aproveite aos que infelizmente preferem a frequencia na taberna e no jogo ao santuario da Escola. Pintando claramente as consequencias funestas dos que se deixam arrastar pelo vicio até à pratica dos mais horrorosos crimes, termina pela – Apoteóse à Instrução.
         Felicitamos José Ribeiro pelo exito merecido que obteve a sua produção literaria e desejamos que continue”.

         Muito frequentemente se encontram, nos diversos jornais figueirenses, ao longo dos anos, notícias dos seus correspondentes locais, chamando a atenção, e condenando mesmo, os nefastos efeitos da trilogia “taberna, jogo e alcool” que, não sendo exclusivo de Tavarede, proliferava com abundância na nossa terra. Claro que era proveitoso para os taberneiros, e havia bastantes, mas trazia graves prejuízos aos pobres trabalhadores, na sua maior parte cavadores, ainda sem qualquer nível de instrução, e que depois de árduos dias de trabalho com a enxada, procuravam, naqueles vícios, um pouco de esquecimento para a sua “negra” vida. Posso dizer que desde os primeiros números dos jornais publicados encontrei notícias destas. E, infelizmente, muitos anos depois ainda as continuei a encontrar.

         Como se verá lá mais para a frente, o teatro era, então, um meio ideal para denunciar e combater este mal. Ora, aquele retalho acima transcrito, leva-me a fazer dois comentários. Um deles é que, tendo feito dezasseis anos havia dois meses, terá sido este o primeiro trabalho de José Ribeiro como autor teatral. É, na verdade, extraordinário que, com dezasseis anos, tenha escrito uma pequena peça, para mais um drama, que mereceu tão elogiosas referências. O segundo, e sabendo nós como ao longo de toda a sua existência José Ribeiro sempre lutou em defesa dos trabalhadores e do povo da terra do limonete, leva-me a admitir que ele tenha situado a acção daquele pequeno drama, nas tabernas de Tavarede e na Escola, certamente referindo-se à escola nocturna da Sociedade de Instrução Tavaredense.

         Nada posso acrescentar sobre este assunto, mas julgo acertado incluir aqui esta breve referência, não só como simples curiosidade, mas como demonstração da precocidade talentosa do saudoso Mestre nestes trabalhos teatrais dedicados ao povo da terra do limonete, da qual tanto se orgulhava de ser filho.

         No ano seguinte, 1912, surgiu no palco tavaredense a primeira revista. Tinha o título de “Na Terra do Limonete” e foi seu autor João dos Santos, o proprietário da quinta dos Condados e do edifício do Terreiro, onde se encontrava instalada, desde o seu início, a Sociedade de Instrução Tavaredense, e que havia herdado de João José da Costa. Tal como este, também João dos Santos exerceu temporariamente as funções de ensaiador do grupo cénico. Foi autor da música o tavaredense Gentil da Silva Ribeiro, pai de José Ribeiro.

         Relativamente a esta revista, encontrei na imprensa figueirense os seguintes apontamentos. Em “A Voz da Justiça” de 9 de Abril, diz-se:

“Como dissémos, a Sociedade de Instrução realizou na sábado uma récita com a revista intitulada Na Terra do Limonete e a comédia Birras do Papá. Fazer uma revista de costumes de Tavarede, terra pequena, em que escasseia o assunto e há sobretudo o receio de melindrar as personalidades atingidas, não é tarefa muito fácil. Daremos, porém, em poucas palavras, a nossa humilde opinião: - os artistas compreenderam bem os seus papeis, imprimindo-lhes muita graça e naturalidade. A revista foi admiravelmente ensaiada por Vicente Ferreira. O cenário, obra de Jean Batout produz magnífico efeito. A música, composição de Gentil Ribeiro, tem números lindíssimos e boa execução e, já que falamos em música, não esqueceremos Eugénia Tondela e António Graça, que cantaram corretamente as canções que lhe foram destinadas. Houve aplausos em barda, especialmente na parte final (apoteose), em que D. Limonete estabelece o confronto entre o convívio deletério da taberna e a paz e a fraternidade que predomina no seio da Sociedade d’Instrução. No próximo sábado repete-se a revista”.

         No outro jornal então publicado, a “Gazeta da Figueira”, escrevia-se na sua edição de 17 do mesmo mês:

         “O elegante theatro da Sociedade d’Instrução nos dois ultimos sabbados regorgitou de pessoas da familia dos seus associados. A Superior sobressaia pela formosura das nossas gentis conterraneas vestidas luxuosamente, dando assim uma nota sympathica à festa familiar da benemerita agremiação.
         Representou-se a revista de costumes tavaredenses – Na Terra do Limonete – que foi habilmente desempenhada, tendo por isso o agrado de todos que applaudiram com enthusiasmo os amadores, especialisando Eugenia Tondella, inteligente rapariga que tem conquistado no palco innumeras sympathias; Antonio Graça e Vicente Ferreira, ensaiador e quem interpretou o papel de D. Limonete, - arrancando à plateia bastantes palmas na apotheose – excellente propaganda para instruir os filhos do povo, porque se combate os vicios que os fazem viver criminosamente nas trevas da ignorancia e se lhes aponta o caminho do bem: - a escola e a associação.
         A musica de Gentil Ribeiro é bonita e o scenario do nosso amigo Jean Batut é de magnifico effeito, trabalho que prova mais uma vez a sua habilidade de pintor.
         Ao sr. João dos Santos, auctor da revista, endereçamos os nossos applausos, desejando ardentemente que continue, com o mesmo enthusiasmo, na espinhosa mas humanitaria missão de instruir os filhos de Tavarede”.

         Ainda sobre esta revista mais um pequeno apontamento que encontrei em “A Voz da Justiça”, do dia 23 de Abril:

         “Com a repetição da revista – Na Terra do limonete – terminou no sábado a série de serões teatrais com que a Sociedade d’Instrução Tavaredense nos deliciou nos ultimos mezes.
         A sala estava repléta de espétadores que ali foram manifestar a sua gratidão aos briosos rapazes que tão proveitosamente souberam empregar as horas que lhes restavam do seu labor quotidiano.
         Surpreendeu-nos o que D. Limonete lobrigou no firmamento atravez d’um vidro fumado: além d’uma enorme multidão de ratos e musicos, em volta do sol, viu tambem o Vicente Ferreira a dançar o vira com a lua e o compadre Alegria a chorar como uma Madaléna arrependida”.

         Para abertura da época teatral de 1913, encontrámos, também em “A Voz da Justiça”, de 4 de Abril, a notícia de mais uma récita promovida pela Sociedade de Instrução Tavaredense, representando-se – Uma situação complicada (certamente uma comédia) e uma paródia de revista, intitulada “Dona Várzea”. Desta, não encontrei qualquer outra notícia.

         É pena que se não encontrem os textos destas duas revistas de João dos Santos, pois presumo a sua autoria de ambas, mas foram elas, e disso não há qualquer dúvida, as primeiras escritas sobre os usos e os costumes do povo tavaredense. Da última, encontra-se arquivada na biblioteca da colectividade, a partitura musical.

         Como se faz referência nas notícias transcritas, foi ensaiador Vicente Ferreira, também ele intérprete.

         É pouco, como se vê, mesmo muito pouco, o que se sabe sobre estes trabalhos. Mas, e ainda antes de passar à seguinte peça sobre o tema tratado, e a partir da qual já existem os textos e muito mais notícias, vou, uma vez mais, socorrer-me do livro “50 Anos ao Serviço do Povo”:

         “O primeiro programa impresso que existe no arquivo, é o da revista local em 2 actos e 6 quadros Na Terra do Limonete, representada no dia 6 de Abril de 1912. Foi escrita por João dos Santos e musicada por Gentil da Silva Ribeiro, que desde os primeiros anos da Sociedade, logo após a saída de João Proa, tomou a direcção da orquestra e ensinou música, mantendo-se naquelas funções, dedicada e desinteressadamente, até ao seu falecimento, em 25 de Julho de 1918. Por este prospecto sabemos que o grupo cénico era então constituído por: Eugénia Tondela, Felismina de Oliveira, Clementina de Oliveira, Belmira Rodrigues, Aurora de Oliveira, Guilhermina Santos, Virgínia de Oliveira, Vicente Ferreira, António Broeiro, Jaime Broeiro, José da Silva Ribeiro, António Graça, José Fernandes Serra, António Duarte Silva, João Figueiredo, José Gomes da Apolónia, João Graça e António Grilo. Faltam, porém, aqui os nomes de alguns elementos do coro, que não figuram no programa”.



sábado, 13 de junho de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 10

Algumas festas em Tavarede


         Já não são do meu tempo as grandes festas populares em Tavarede. No primeiro caderno, e com base nas notícias colhidas na imprensa figueirense, recordei as principais. E, segundo os elementos disponíveis, em lugar bem destacado, encontravam-se as festas ao S. João. Destas, o número que tinha mais fama eram as cavalhadas. Na terceira parte deste caderno, entre as diversas histórias que conto, volto a recordar estas festividades, especialmente para dar a conhecer como e quando acabaram.

                                                                                                                                    Mas as cavalhadas foram recordadas num dos primeiros anos de 1940. Lembro-me muito bem de ver desfilar o cortejo frente a minha casa, com a bandeira à frente, a caminho da Figueira e Buarcos, para dar a antiga volta. E, assim, também aqui vou recordar as festas ao Santo Precursor, como o farei a outras que, de alguma forma, ainda se efectuavam ou foram evocadas nos meus tempos.
                                                                                                                                    Das festas sanjoaninas, vou transcrever uma nota escrita por Mestre José Ribeiro.
        
“As chamadas festas de S. João em Tavarede tiveram sempre carácter religioso e profano. Com mais propriedade lhes chamaríamos – São João do Limonete.
         O número de maior realce e que mais avultava nestas festas de S. João, e as tornava bem conhecidas em toda a aldeia e arredores, foram, incontestavelmente, as cavalhadas ou, como mais singelamente se designava o conjunto daqueles festejos – a Bandeira. E, já que referimos a Bandeira, melhor se dirá as bandeiras, porque de duas bandeiras se tratava. Seja-nos permitido ler o que consta da acta da sessão da Junta da Paróquia de Tavarede, de 26 de Junho de 1889:
         “As bandeiras de S. João são trastes ou objectos da paróquia, tendo o padre obrigação de fazer a sua entrega aos forasteiros que se apresentarem para fazer a festa, visto que o fim principal destas funções é um divertimento de arraial com fogueiras no mês de Junho, onde se salta, canta e dança estouvadamente; iluminações nas ruas, cavalhadas em toda a qualidade de alimárias, mascaradas grotescas, com folganças e exibições fantasiosas, tudo para entreter, divertir e fazer rir”.


         Antes do início das festas fazia-se a chamada pega da bandeira, às vezes com cerca de um ano de antecedência sobre a nova festa de S. João.
         Na manhã do primeiro domingo da festa havia a função religiosa, com aparatosa ornamentação da igreja, missa cantada e sermão. Vinha também orquestra, e alguns cantadores de Coimbra.
         As cavalhadas eram o prato forte da festa, com o grande cortejo equestre, assim formado: abrindo o cortejo, em nota cómica e com sabor carnavalesco, vinha numerosa burricada, em jeito de guarda-avançada da cavalaria que abria com dois guias, assim chamados os dois cavaleiros que iniciavam o solene cortejo hípico e exibiam cada um a sua vara de 2 metros, pintada de branco e com um lacinho de fita de cor. Seguia-se então a cavalaria, em duas filas que marginavam as ruas do percurso; nesse conjunto destacavam-se dois grupos de 3 cavaleiros: o porta-estandarte da bandeira pequena, ao centro e os dois padrinhos, um de cada lado, e grupo semelhante com a bandeira grande. Era um cortejo extenso, vistoso e imponente.
         No asínino grupo da guarda-avançada já referida destacava-se o muito simpático, e sempre alegre e desejada presença, representante da famosa e estimadíssima dinastia dos Toquins de Tavarede. Este vistoso cortejo passava por Buarcos, ia dar volta à Praça Nova, na Figueira, e vinha de seguida a Tavarede, a dar as tradicionais 3 voltas à igreja, enquanto festivamente repicavam os sinos da torre.
Emudecidos os sinos, era a pausa do cortejo. Os cavaleiros abalavam por instantes largando rédeas; as mesmo tempo, ao longo da rua, desde a Igreja ao Paço, vão-se abrindo as portas e aparecem as moradoras, mulheres e raparigas, sobraçando limonete, erguendo e oferecendo, em alegria ruidosa, ramos de limonete, braçadas de limonete, numa apoteose de verdura rústica e bem cheirosa. O silêncio tristonho da rua mudou-se em animação de vozear alegre; dominava já a mocidade de Buarcos, gente moça que aproveitava o passeio e homens e mulheres que vinham à feira do limonete. Pequenos quintais de residências, leiras do Quintal Ferreira, retalhos de várzeas em redor da aldeia, eram pródigos em limonete: fosse velhos troncos que a poda impiedosamente fizesse reverdecer e enfeitar-se de novos e sempre renovados ramos, ou novos e generosos limoneteiros que já exibiam ramos vigorosos, alguns prestes a enfeitarem-se de pequeninas estrelas nas pontas dos ramos franzinos, em flores ternadas ou binadas, dispostas em espigas frouxas, formando panícula piramidal.
         Nesta pausa do cortejo, intervalo obrigatório, os cavaleiros não se ficavam quedos, que o não consentiam os cavalos frenéticos, talvez já embriagados com o cheiro da lúcia-lima, a bela-luísa, a doce-lima, a erva-luísa, o pessegueiro inglês – que tudo é limonete.
         Alguns dos cavaleiros vestiam fraque e chapéu alto, e era vê-los abalarem, velozes, pela rua cheia de gente, aproveitando o intervalo para uma fuga em visita-relâmpago aos arredores da aldeia.
         A cerimónia religiosa, na igreja primorosamente ornamentada para o efeito, realizava-se com toda a pompa e respeito. Orquestra e cantores fizeram-se ouvir no coro. No púlpito, um sacerdote proferiu adequado sermão. A cerimónia decorria sob a invocação de São João Baptista. Não me lembro de ter ouvido referir no sermão o nome de Herodíase que no meu espírito vinha sempre ligado ao da luxuriosa Salomé e ao martírio de São João Baptista, o profeta Yokanaan. A propósito, direi que vi a cabeça degolada do puro e austero pastor que vivia no deserto e se alimentava de mel silvestre e gafanhotos. Posso garantir que vi a cabeça de S. João Baptista – moldada em barro, naturalmente... e muito bem pintada -, já colocada sobre o grande prato de cobre que servia ao sedutor bailado da Salomé, no caso interpretada pela exímia, rica e formosa bailarina Sara Sevilha, que teve luxuosa habitação na Figueira, no chalé da quinta do Pinhal, muito falada então bailarina famosa que tivemos oportunidade de apresentar aos leitores de “A Voz da Justiça”, neste nosso jornal nos dias 9, 20 e 30 de Maio de 1922.
         Passaram 60 anos...
         Terá envelhecido a sempre jovem, brilhante e formosa Salomé do chalé luxuoso e rico do Pinhal?”.

         Quase tão desejadas quanto as festas a S. João, eram as madrugadas do primeiro de Maio, estas com a particularidade de inspirarem poetas. E se já transcrevi alguns trechos bem poéticos, muitos mais encontrei e que merecem ser recordados. O poeta e escritor figueirense António Augusto Esteves, que usou o pseudónimo de Carlos Sombrio, deixou-nos descrito a primeiro de Maio na fonte da Várzea.

         “Quem não conhece, na madrugada de amanhã, a Fonte da Várzea da Figueira?
         Ranchos alegres que apregoam, nas cantigas repassadas de côr, a alegria salutar do amor, da vida, da felicidade!...
         Cântaros à cabeça, transformados em maciços de flôres, elas lá vão em busca da água fresquinha que hão de trazer no regresso, depois de bailarem a alegria que lhes vai nas almas e de folgarem tôda a mocidade que vive nos seus corações amorosos.
         É que aquela Várzea é bem, neste dia, um altar onde as moças poisam as melhores preces de seu amor feliz, e onde fazem as preces da sua alegria venturosa.
         Reboam ali, naquele largo, pertinho da Fonte, cantigas desfiadas por fieiras de oiro, correndo, como veios de água cantante e fresca, cada vez mais felizes, cada vez com mais encantos.
         E quando o sol se ergue para doirar a folhagem tenra dos arbustos, a desafiar o viço e a roubar a frescura das rosas – manchas de neve, pintas de oiro ou pontos vermelhos, sensuais, de fogo aveludado -, em que a palidez da madrugada empresta às moças desaparece, para as fazer de olhar mais perturbante, mais amoroso e mais feiticeiro, a ventura, a saúde, o prazer de gosar a liberdade, de cantar e de viver, assim, à sôlta, - viver que não extenua, que não cansa, que perturba e entontece, - então os corações erguem-se mais altos, tão altos como a alegria juvenil da mocidade – tal qual como os braços espinhosos das roseiras, e contam á água fresca que os cântaros levam, a sua alegria que, por ser muita, é sempre pouca – tão curta é a hora feliz que os venturosos julgam descuidadamente viver!
         Pudessem muitos mentir, e na madrugada de amanhã, o riso a florir nos lábios, a alma, lá dentro, a brincar contente, satisfeita e feliz, ir até à Várzea, nos ranchos alados da mocidade, e dizer às rosas, no seu dia, o que sentem e o que não podem dizer!...
         Se assim fôsse, todos seriamos felizes, todos seriamos alegres, contentes, pelo menos, aparentemente.
         E as rosas, no dia do seu culto, teriam, naturalmente, mais beleza, mais frescura e mais perfume!...”.


         Finalmente, mais uma vez recorro a Mestre José Ribeiro. Aliás, foi ele quem em 1950, na sua peça “Chá de Limonete”, fez reviver o rancho dos potes floridos de Tavarede.

Tavarede no Teatro - 1

À guisa de... Prólogo






 João José da Costa
Fundador do  teatro do Terreiro


         É com verdadeira satisfação que confesso que, ao longo deste últimos anos, tem sido para mim extraordinariamente aliciante este trabalho de leitura e pesquisa, feito em livros, jornais, revistas e outros documentos que, por alguma forma, estivessem relacionados com a história de Tavarede.

         O mesmo aconteceria, com toda a certeza, a qualquer outro que ao mesmo assunto dedicasse algum do seu tempo disponível. Talvez, e acredito que sim, eu tenha um tempo mais disponível. Mas, repito, tenho-me sentido fascinado nestas minhas buscas, pois, a verdade seja dita, a nossa terra tem um passado histórico, social e cultural de que nós, tavaredenses, nos devemos legitimamente orgulhar.

         Pena é que quase todo esse passado seja, no presente, praticamente desconhecido de todos os filhos de Tavarede, aqui residentes ou não. E, na verdade, a nossa terra, com a transformação que nela se operou nestes últimos vinte a trinta anos, já muito pouco tem que desperte a curiosidade a alguém para conhecer o seu passado.

         Nós, os mais velhos, ainda recordamos o prazer que sentiamos em dizer, quando isso nos perguntavam, que éramos tavaredenses, naturais de Tavarede, a pequena e linda aldeia do limonete. Agora, não. O isolamento desapareceu e a integração no perímetro da cidade da Figueira da Foz teve, como consequência, uma modificação total na maneira de ser e viver dos tavaredenses. A cidade, pouco a pouco, tudo nos foi absorvendo.

         Além da imensa vastidão de terrenos que a Figueira fez desanexar de Tavarede, também “obrigou” os tavaredenses a modificarem as suas actividades sociais e culturais, levando-os a esquecer as suas raízes aldeãs e campesinas, e a adoptar os novos sistemas citadinos. Quanto à história, isso... já tinha passado à história no longínquo dia de 12 de Março de 1771, quando o governo de então resolveu elevar a vila o lugar da Figueira da foz do Mondego, transferindo para lá a nossa câmara e as nossas justiças.

         Não admira, portanto, que o passado de Tavarede esteja esquecido. Até porque não há muita coisa escrita sobre a nossa terra, isto de forma acessível, pois quem se der ao trabalho de pesquisa encontra muito material, e bastante interessante, embora de difícil consulta.

         Foi o desejo, que sempre tive, de conhecer melhor o passado da minha terra e de o deixar escrito, de forma simples e acessível, a um ou outro familiar ou amigo que um dia queira dar “uma vista de olhos”, que me levou a esta imensa, mas, ao mesmo tempo, gratificante, tarefa.

         Tinha proposto a mim próprio, e assim o referi nos dois cadernos já publicados, fazer apenas um resumo, acompanhado das necessárias transcrições, do que fosse encontrando, e que me parecesse de interesse, sobre o passado de Tavarede.

         Aconteceu, no entanto, que determinados assuntos ou temas, que reputo de muito interesse para quem queira conhecer a história passada da terra do limonete, não poderiam ser integrados naqueles cadernos que intitulei “Tavarede – a terra de meus avós”, pois que, só por si, ocupariam demasiado espaço e, até, seriam descabidos. Mas, também, não os poderia ignorar, pura e simplesmente, se a minha intenção era a divulgar todo o material histórico, social e cultural a que eu tivesse acesso.

         E foi assim que me surgiu outra ideia. Porque não fazer destes assuntos, que por mera opção pessoal me parecem dignos de ser recordados, uns outros cadernos bem mais pequenos e acessíveis?

         Assim pensei e assim fiz. E surgiu uma outra série de pequenos cadernos, tão despretenciosos uns quanto os outros, a que dei o título de “Recordando...”, de que este é o segundo.

         Curiosamente, e se o primeiro diz respeito ao teatro, pois que tive o gosto de o dedicar a essa extraordinária amadora dramática tavaredense que se chamou Violinda Nunes Medina e Silva, o segundo também o dedico a essa grande e querida tradição da minha terra.

         Não ignoro que é demasiado arriscado escrever sobre o passado teatral em Tavarede. É que esse passado, digo mesmo, esse glorioso passado de tão cultural Arte, é, talvez, o mais honroso e o maior emblema da terra do limonete. Mas, descanse quem tiver a paciência de ler estas linhas, também me não atrevo a tanto.

         É que, nunca será demais recordá-lo, Tavarede teve o orgulho e o privilégio de ter como filho, um verdadeiro Homem de Teatro, um Mestre na arte cénica que, tão assombrosamente, elevou o teatro tavaredense ao mais alto nível no nosso país. E escrever sobre o teatro em Tavarede será, na sua maior parte, escrever a história de Mestre José da Silva Ribeiro, inegavelmente o maior vulto da cultura tavaredense, não contemporânea mas de todos os tempos. Para tal terá de ser alguém com saber, engenho e tempo disponível para escrever uma bem enorme obra, tanto há a referir sobre este assunto, desde os finais do século dezoito até quase aos finais do século vinte, ou seja, duzentos anos de teatro em Tavarede!

         Mas acredito sinceramente que já não será ousadia da minha parte, pelo menos indesculpável, escrever alguma coisa, não sobre o teatro em Tavarede mas, sim, sobre Tavarede no teatro. É coisa completamente diferente. Enquanto a história do teatro em Tavarede abrange um vastíssimo universo, Tavarede no teatro tem um campo relativamente curto, isto só em termos de comparação.

         Facilmente se depreende que, o que pretendo recordar neste pequeno caderno, são as peças (revistas, fantasias ou operetas) que tenham sido escritas para Tavarede, para serem apresentadas no seu palco e aos seus conterrâneos e nas quais, os seus autores, afloraram a vida na terra do limonete.

         E referi “no seu palco” pois, embora o teatro não tenha sido um exclusivo, em Tavarede, da Sociedade de Instrução, pois a sua história começa bem antes da fundação desta colectividade, as peças em questão foram escritas para serem representadas pelo grupo cénico desta colectividade.

         Não há notícia de que nas pequenas sociedades dramáticas, que em meados do século dezanove, “vegetavam em Tavarede como tortulhos”, ou nas posteriores associações “Estudantina” ou “Grupo de Instrução”, desaparecidas nos primeiros anos do século vinte, e, também, no Grupo Musical e de Instrução, felizmente ainda em actividade, embora não teatral, mas que teve um excelente grupo dramático desde a sua fundação, em 1911, até ao ano de 1930 em que, por motivos que tentarei explicar num outro trabalho, deixou de ter condições para fazer teatro, se representassem quaisquer trabalhos de características locais.

Talvez que ao tão afamado “Presépio” tenham dado, num ou noutro quadro ou cena, algum sabor local, mas, pelo menos em tudo o que li, não encontrei nada de concreto. Não esqueçamos, no entanto, que por volta de 1870, se representaram em Tavarede, e em simultâneo, seis Presépios! Quem nos diz que uma das cenas, num deles, não tinha sido localizada na nossa terra pelo respectivo encenador, até para dar mais entusiasmo aos seus assistentes?

         Mas vou prosseguir. Curiosamente, o tema que estou a tratar, “Tavarede no Teatro”, tem duas épocas, ou vertentes, como agora se diz, absolutamente distintas. Uma delas, a primeira, que vai até à década de 1930/1940, é exclusivamente dedicada à fantasia e à vida e costumes do povo tavaredense de então. Como adiante veremos, teve três autores: João dos Santos, João Gaspar de Lemos Amorim e José da Silva Ribeiro, e ainda uma ligeira participação do saudoso prof. Alberto de Lacerda. Isto quanto ao texto, pois na parte musical teve a intervenção de Gentil da Silva Ribeiro e do prof. António Maria de Oliveira Simões.

         A segunda época, bem mais recente e que se iniciou, em Outubro de 1950, com a célebre fantasia “Chá de Limonete”, é toda ela da autoria de Mestre José Ribeiro que, com o seu enorme talento e inteligência, se serviu deste género teatral para dar a conhecer aos seus conterrâneos a história de Tavarede, escrevendo e encenando, como só ele o sabia fazer, dez revistas-fantasias, em que descreveu alguns dos mais importantes acontecimentos históricos da nossa terra e recordando tradições, usos e costumes ignorados pelos tavaredenses a quem ele, de maneira tão feliz, os deu a conhecer. Musicalmente, teve a colaboração nestes trabalhos do prof. António Simões, de Anselmo Cardoso Júnior e de João da Silva Cascão, aquele também uma dedicação de muitos anos à nossa terra, e este último, que se pode considerar um tavaredense, e que muito se tem distinguido na música.

         Pois bem, refiro, desde já, que este meu trabalho, ou melhor, este meu estudo, se debruçou unicamente sobre a primeira daquelas duas vertentes. Os meus conterrâneos mais “entradotes” na idade, ainda se lembrarão de “O Sonho do Cavador”, de um ou outro quadro de “A Cigarra e a Formiga” e pouco mais. Mas, e isso com toda a certeza, se lembram de muitas cantigas que foram escritas para as primeiras revistas e operetas sobre Tavarede.

         Ainda hoje, quando se representam espectáculos de evocação, se ouvem muitas dessas cantigas, sempre com o maior agrado. Nos meus tempos de rapaz, cantava-se muito em Tavarede. Na lida da casa, na costura, enquanto lavavam no rio ou andavam nas tarefas das sementeiras ou colheitas, cantava-se, e cantava-se com alegria

         A maior parte dessas cantigas, senão mesmo todas, eram do teatro. As mais velhas, entoavam as cantigas dos seus tempos da mocidade, aquelas que mais lhes tinham agradado e que recordavam com saudade. As mais novas, cantavam as lindas canções de “O Sonho do Cavador” e de outras peças mais recentes. Todas elas, no entanto, muito bonitas, cheias de melodia, cantando, quase sempre, a vida do campo, nas suas fainas alegres e tarefas rudes, e a rusticidade da nossa aldeia pequenina mas bem pitoresca.

         Até nisso houve uma grande modificação. Já se não ouvem cantigas nas ruas de Tavarede; o rio, ou antes, o pequeno ribeiro, já não tem lavadeiras a quem “fazia cócegas nas pernas”; as terras, na sua maioria, já não são cultivadas. E aquela alegria que tão própria era do povo da minha aldeia, também essa, infelizmente, nos foi tirada pela cidade.

         E agora reparo: o que eu me alonguei nesta explicação que eu pretendia ser tão
pequena. Chega, e vamos, então, a “Tavarede no Teatro”.