sábado, 4 de julho de 2015

Tavarede no Teatro - 4

         Mas, enfim, cada qual tem a sua opinião e os críticos lá terão tido as suas razões para escreverem aquilo. Mas o último deles acabou por me surpreender imenso quando, um pouco mais adiante e ainda sobre o enredo da opereta, escreveu “e para rematar as minhas considerações ácerca do valor da peça, devo dizer que era perfeitamente dispensável a pornografia que a esmalta, que para mais não serve senão para gáudio da gente ignorante que gosta sempre de ouvir porcarias”.

         Muito castos deveriam ser os ouvidos deste comentarista. Ver-se-á, adiante, na transcrição de um ou outro fragmento da peça, que Gaspar de Lemos lhe dá, aqui e ali, uns laivos mais picantes, mas considerar pornográfico o texto desta opereta é que me parece “um disparate completo”.

                                                        ***

         Quando o pano sobe, a cena representa o Largo da Igreja, de Tavarede. A um dos lados vê-se um trecho do ribeiro, com as pedras que serviam de lavadouro.

         O regedor da freguesia, Zé Badaleiro, havia recebido dois dias antes, uma carta de Lisboa avisando-o da chegada de dois brasileiros, parece que podres de ricos, recomendando “que se recebam e tratem com toda a bizarria”. A modos que vinham em viagem de recreio e muito empenhados em visitar esta terra, onde vêm procurar uma tal Lúcia-Lima, que parece “que é senhora duma lindeza de alto lá com ela”.

         O pobre do regedor tratou de imediato de reunir as pessoas mais importantes da terra para tratarem da recepção e, quando recebeu um telegrama avisando da chegada nesse dia dos visitantes, tratou de juntar as pessoas no largo da Igreja e preparar tudo condignamente. O pior é que nem na aldeia, nem nas redondezas, ninguém conhecia tal senhora. Nem mesmo Pinga-Amor, como o nome diz o “conquistador” da terra e que, diga-se desde já, andava doido de amor pela linda Capitolina, a filha do Zé Badaleiro. E se este a não conhecia, quem haveria de conhecer a tal Lúcia-Lima?

         Ora o nosso Pinga-Amor, pouco amigo de trabalhar e que dizia constantemente a Capitolina “tu bem sabes como eu te quero, que não vejo outra mulher neste mundo; que a minha maior ambição seria levar-te à face do altar”, com toda a certeza mais interessado no dote que o regedor haveria de dar à filha, do que na rapariga, quando ouviu falar em brasileiros ricos, à procura de uma mulher, ficou temeroso com a possível conquista da sua pretendida, por parte dum dos visitantes, e logo começou a pensar na maneira de os mandar para bem longe mal chegassem.

         Pouco tempo depois, o tal “passaroco dos brasileiros” desceu na Várzea e, ao aviso recebido, logo se juntou o povo, aguardando a chegada dos viajantes. Mal chegaram ao largo, a comissão de recepção, deseja-lhes as boas-vindas cantando:

      “Aceitai, meus senhores
     Nossa saudação
     Pela visita honrosa
     A esta povoação.
     A gente rica e pobre
     Desta linda aldeia
     Salta de contente
     De vos ver anseia.

     Visitantes
     Cativantes
     São por todos
     Aclamados.
     Nossos peitos
     Satisfeitos
     Soltam ledos
     Altos brados.

     Podeis entrar tranquilos,
     Nobres forasteiros
     Em nós há só amigos
      Francos, verdadeiros”.

         Cativados com esta recepção, um dos brasileiros, Eduardo Leirosa, o tal que procura Lúcia-Lima, diz então: “Em meu nome e do meu amigo Tomás Castanho, agradeço penhorado a carinhosa e festiva recepção que nos fazem. Pelas pessoas que de Lisboa nos recomendaram contávamos com bom acolhimento, mas pelo que vejo, tanto o sr. Zé Badaleiro como os seus amigos e povo desta linda terra, são todos muito amáveis e hospitaleiros... Repito: muito gratos, muito gratos...”.

         E depois de feitas as apresentações dos brasileiros, não esquecendo “o nosso moleque, o criado Dominus-tecum que não deve ficar em silêncio. É mulato cor de café com leite. O café veio-lhe da mãe e o leite é do pai...”, o regedor convida todos para irem a sua casa beberem um copo do tinto, na adega, e, por sua vez, apresenta as pessoas gradas da terra:

Badaleiro – Este é o amigo Aleixo Furão. É cabo do mar reformado. Navegou por Séca e Méca. Só lhe faltaram os olivais de Santarém. É Furão mas já não justifica o apelido. Aqui têm o Cosme Papóia. É o nosso barbeiro e o nosso médico. Como barbeiro tira o coiro e deixa o cabelo. Como médico receita para todas as moléstias o unguento de soldado. Tem curas admiráveis!
Dominus-tecum – (áparte) – Bem sei. P’ra rapeira não há melhor!
Badaleiro – (continuando as apresentações) – O nosso sacristão Gil Chinguiço. Muito prático em badalo e galhetas...
Pinga-Amor – Ele manobra o badalo e a mulher apanha as galhetas...
Badaleiro – Uma notabilidade da terra, o Brás Piúga. Músico de fama. Tocava gaita de foles mas rompeu-se-lhe a bexiga e a gaita ficou estragada. Agora toca berimbau e diz muito bem: “Piolho!”.
Pinga-Amor – E tem sempre o berimbau afinado...
Badaleiro – (continuando) – Finalmente temos o nosso estimado Pinga-Amor, amador dramático de três assobios. Fez belamente o papel de urso no drama “Covis das focas”. Chamam-lhe Pinga-Amor porque todo se baba com as mulheres...
Dominus-tecum – Lá no Rio chamam-lhe doença do queixo caído...
Leirosa – São muito interessantes os seus amigos...
Castanho – (para Pinga-Amor) – Os meus parabéns sr. Pinga, estimarei que a doença não vá mais longe...
Badaleiro – Quero agora apresentar-lhes a minha filha Capitolina. (para a filha) Anda cá, menina. Apesar da educada na cidade é um pouco acanhada e por isso hão-de desculpá-la.
Castanho – (áparte) – Será acanhada mas é um peixe d’estalo! Sim, senhor...

         Feitas as apresentações e ainda antes de saírem, o Leirosa mostra o anúncio que os levou a fazer tão grande viagem e pergunta se alguém pode dar alguma informação.

         O Pinga-Amor lê, em voz alta: “Senhora nova, sem fortuna mas formosa, de boa reputação e bem prendada, deseja contraír matrimónio com cavalheiro respeitável e em condições de manter o decoro e decência de família digna de toda a consideração. Quem pretender, dando referências idóneas, queira dirigir-se a Lúcia-Lima, Beco das Poias, Tavarede”. Ninguém conhece. Mas o regedor aguarda a chegada dos cabos de Caceira, Casal da Robala, Carritos e Saltadouro, a quem mandou chamar e talvez algum deles conheça a tal Lúcia-Lima.

         Depois de saírem todos, Pinga-Amor agarra Capitolina por um braço e tenta, mais uma vez, que ela aceite os seus galanteios. Também uma vez mais ela recusa e foge, deixando-o desalentado e a reflectir:

         “Parece-me que dei no vinte. Trata-se assim, despreza-me, talvez com o cheiro nalgum dos brasileiros. São ricos, avezam grosso bagulhame. Podem satisfazer os caprichos desta ambiciosa duma figa! E eu? Um triste flautista que não tem onde caír morto... Ah! Mas se assim é, podem contar comigo. Eu mexerei os pauzinhos que ambos os moinantes hão-de ir calcurriando daqui para fora...”.

         Estava pensando como proceder quando lhe surgiu uma ideia, mal viu entrar em cena os esperados cabos de ordens. Depois de saber que eles não conheciam, nem nunca ouviram falar, de Lúcia-Lima, faz-lhes uma proposta:

         “Olhem cá! Querem vocês ganhar cem mil reis? Vocês vão dizer ao sr. regedor que no Cabeço do Mioto morava aqui há meses a tal Lúcia-Lima, bonita rapariga, irmã dum capitão da tropa, que tem andado lá pelas Áfricas, que aqui veio de licença e que depois a levou para Macau”.

         Naquele tempo, cem escudos era muito dinheiro. Nem pensaram que Pinga-Amor era um pobretanas e que não teria dinheiro para lhes pagar, mas aceitaram logo e foram para casa do regedor dar a notícia.

         Não hesitaram os brasileiros. Logo Leirosa diz: “Na verdade é um contratempo com que eu não contava. Mas, já agora, não desisti de procurar a Lúcia-Lima. Com um aparelho como o meu vai-se ao fim do mundo. Partiremos agora mesmo para Macau, que é terra portuguesa”.

         Bem os procurou dissuadir da viagem o Zé Badaleiro que notou os olhares que Tomás Castanho deitava à sua filha e que lhe parecia um excelente partido para Capitolina. Mas, nada feito.

         E depois das despedidas, eles vão partir enquanto o coro canta:

           “Ao deixar a nossa aldeia
             Para arrostar mil baldões
             Não se quebrou a cadeia
              Que prendia os corações.

              Ao voltar do fim do mundo
               Lá dessas terras d’além
               Lembrai-vos da gente amiga
               Passai por aqui também.

               Adeus prezados amigos!
                Neste solene momento
                Pediremos aos céus vos guiem
                A bom porto e salvamento.

                 Nesse Macau tão distante
                 Não encontrareis ninguém
                  Que com tanto desinteresse
                  Vos estime e queira bem.

             
                                           ***

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