sábado, 18 de julho de 2015

Tavarede - A terra de meus Avós - 15

A matança do porco e vindima


         Eram sempre, para mim, dois dias em cheio. Primeiro, em Setembro, eram as vindimas e, já no inverno, era a matança do porco. Vou começar por esta e nada melhor do que copiar o que se escreve no livro “Figueira do Passado ao Presente – Gastronomia e Culinária”.

         “Não há muitos anos ainda, as famílias dos arredores da cidade criavam o seu porco, alimentado com as sobras das refeições e para o qual se cozinhava propositadamente a “lavagem”, com água, couves e farinha ou sêmea, o que permitia que o toucinho entremeado ficasse mais gostoso.
         A matança, geralmente em Dezembro e escolhida a fase da lua conveniente, segundo a boa tradição popular, era pretexto para a reunião de toda a família. Faziam-se os bolos de sangue, as morcelas, as papas de moado, e conservavam-se na salgadeira os ossos e o toucinho. Preparavam-se os negritos, os chouriços e os presuntos que haviam de chegar para todo o ano, sem falar na banha, nos rojões, no sal de unto e nos torresmos. Os lombos assados no forno eram conservados em banha e comiam-se parcimoniosamente nos dias de festa. Até a cabeça era aproveitada, juntamente com as queixadas, a língua, as orelhas e os miolos, de que se preparava um prato requintado com ovos, pedaços de carne e miolo de pão”.

         Recordo três épocas. Primeiro, nos meus tempos de rapazito, era a matança anual em casa de meus avós paternos, em Tavarede. Já rapazote, passei a ir, todos os anos, a Reveles às matanças em casa de meus tios maternos. Posteriormente, e outra vez em Tavarede, nunca deixarei de recordar a matança do porco, numa casa cujos donos não quero nem posso deixar de recordar nestas histórias, pois sempre foram para mim de uma bondade e de um carinho verdadeiramente excepcionais. Gratamente, evoco as figuras do senhor Elói e da senhora Pureza, em cuja casa, durante tantos anos, fui sempre bem recebido no grupo de amigos que ali se reuniam nestes dias e não só.

Algumas vezes assisti a todos os preparativos que antecedem a matança. O preparar da forte tábua inclinada, o ir buscar o animal ao curral e ao amarrá-lo, fortemente, para estrebuchar o menos possível enquanto era sangrado. O sangue, que corria em esguicho da facada, caía num alguidar de barro vidrado, onde estava um pouco de sal e vinagre e era constantemente mexido com uma colher de pau, para não coalhar.

         Ainda o dia mal tinha rompido e já o porco se encontrava chamuscado e muito bem lavado e esfregado. Era chegado o momento da primeira paragem. Se ao chegarem, os homem “matavam o bicho” com figos secos e aguardente, havia agora petisco de garfo, que constava sempre de bacalhau assado na brasa, temperado em abundância com bom azeite e no qual sobressaíam muitas lascas de alho. A travessa era colocada em cima da carcaça do pobre animal. Para acompanhar, o vinho tinto caseiro.

         Acabado o petisco era o porco amanhado. Nesta altura já havia sido aceso um fogareiro, onde, enquanto trabalhavam, iam grelhando pequenos pedaços de carne. Algumas mulheres encarregavam-se da lavagem das tripas, para os enchidos, enquanto outras iam preparando o almoço. Depois de devidamente amanhado, o animal era pendurado para o enxugo e com as mantas da carne bem abertas e separadas com pedaços de cana, para melhor escorrerem os restos de sangue. Muitas vezes, e quando não a aproveitavam para qualquer enchido, davam-me a bexiga. Vazia e com um fino canudo de cana, enchia-a de ar e servia para brincar, como se fosse uma bola.

         O almoço constava, habitualmente, da tradicional sopa à lavrador, couves com feijão, pedaços de toucinho entremeado e rodelas de bom chouriço, que nadavam em abundância no caldo e que faziam a delícia de todos, comendo-se, até, por gulodice…

         Seguia-se o inevitável sarrabulho, com batatas cozidas. Comia-se até mais não e bebia-se melhor, pois o vinho era bom e à discrição.

         A digestão era feita, pelos homens, na costumada “garujada”. Ao redor da comprida mesa, jogadores e assistentes ali passavam a tarde, ouvindo-se constante cantar de seis, nove e acaba-se a moca… para mais depressa se beber outro copo. É que as taçadas de freiras, entretanto trazidas para a mesa, secavam a boca…

         À noite, o jantar era composto de canja de galinha caseira, febras fritas com batatas igualmente fritas e ovos estrelados, e, como sobremesa, as gostosas papas de moado, polvilhadas com canela. É extraordinário como se comia e bebia naquele dia!

         No dia seguinte era o desmanchar do porco, com as carnes para a salgadeira, e a preparação dos presuntos e dos enchidos, que logo iam para o fumeiro.

         Os dias das vindimas também eram passados no meio da maior alegria. Grupos de homens e mulheres, mais novos ou mais idosos, iam manhã cedo para as vinhas. Pequeno cesto numa mão e tesoura  na outra, lá iam de cepa em cepa colhendo os cachos cuidadosamente. Cesto cheio iam vazá-lo à dorna, que estava em cima do carro de bois à entrada do terreno. Cantava-se muito. E, de vez em quando, molhava-se a goela…

         Eu gostava muito de, com um pequeno cesto enfiado no braço e uma velha tesoura de costura, ir vindimar os corrimões. Cortavam-se melhor os cachos. Depois, quando o carro dos bois vinha trazer as uvas à adega, lá vinha eu sentado ao lado da dorna e a comer cachos doces. Quando a vindima acabava e regressavam todos a casa, era a ocasião da pisa, no enorme balseiro. Eram três ou quatro homens que procediam a esta tarefa. Algumas vezes, agarrando-me por baixo dos braços, também me metiam lá dentro. Diziam que dava força às pernas! Mas eu gostava, de verdade.

         E o mosto lá ficava a fermentar, até ser trasfegado para as pipas, onde continuava a fermentação. Depois era feita a água-pé, juntando uns canecos de pura água ao bagaço e prensando o mesmo, pois ainda continha muito vinho. Ficava sempre uma bela água-pé. A faina ainda não terminava, pois havia que levar o bagaço para o alambique, para destilar e fazer aguardente. Algumas vezes, num pequeno barril, metiam mosto e aguardente e faziam jeropiga, a que juntavam algum açúcar amarelo, o que tornava aquilo numa bebida doce e agradável, embora um pouco alcoólica.


         Enquanto fervia o mosto nas pipas elas não eram fechadas, tinham só um marmelo em cima para não entrar pó. Quando acabava a fermentação, eram então as pipas devidamente fechadas e aguardava-se, com alguma impaciência, que chegasse o dia de S. Martinho para, com um pequeno “espicho”, provar o vinho. Normalmente, era sempre bom…

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