sábado, 8 de agosto de 2015

Tavarede no Teatro - 9

“Pátria Livre”

         “Está solenemente proclamada a independência desta freguesia, que fica constituída em República”. É com estas palavras que o Comandante das Tropas se dirige ao povo que se encontra reunido nos Paços da República.

         E, depois de cantarem o coro de abertura desta fantasia:

                                               “Neste dia abençoado
                                               Caíram nossas cadeias
                                               É façanha que dá brado
                                               Por todas essas aldeias.

                                               A tropa audaz e valente
                                               Tornou nossa Pátria forra.
                                               Soltemos um viva ingente
                                               À República de Andorra.

                                                        Saudemos todos
                                                        Com alegria.
                                                        Ela nos trouxe
                                                        Paz e alforria.

                                               Os da Figueira tirana
                                               Que se não façam pimpões;
                                               Que esta tropa duma cana
                                               Vai-lhe outra vez aos fungões!”

o povo desata em altos vivas e aclamações à nova república do Limonete! No meio de todo aquele entusiasmo, o Comandante proclama: “o cidadão Agostinho Pandorgas, que está presente, fica sendo, pelos seus merecimentos e mais partes, Presidente da República e nomeará ministério”.

         O cidadão indicado aceita, comovido e grato, o cargo para que o escolhem. “Obrigado! Muito obrigado! Bravo Comandante: agora que estamos libertos do jugo odioso, consinta que em nome deste povo lhe agradeça o heroísmo com que levou do rabo a cabo esta façanha imortal. Bendito e louvado seja o vosso nome, agora e na hora da nossa morte”. E parafraseando Napoleão Bonaparte, termina: “dos altos da Chã, dos cimos da Vergieira e do Casal da Robala, do cume do Peso e das encostas do Saltadouro, mais de 40 laparotos o contemplam!”.

         Pois é verdade! Quem diria que, mais de cento e cinquenta anos depois de ter perdido todo o seu poderio em favor da nova vila da Figueira da foz do Mondego, a terra do limonete, num heróico golpe das suas tropas revolucionárias, reconquistaram, não o seu poder antigo, a sua câmara e as suas justiças, mas muito mais do que isso. Conquistaria a sua independência!

         O seu território era pequeno, sem dúvida, mas era mais ou menos do mesmo tamanho dessa outra república a que se comparavam, a república de Andorra. É que, como o bravo comandante disse logo a seguir:

         “Este nobre povo não podia por mais tempo gramar a tirania que pesava sobre ele. Acabaram os vexames, as contribuições, as licenças do carro e caça, o serviço braçal! Quebraram-se os grilhões que nos prendiam à maldita Figueira. Já era tempo de dar liberdade a este povo, que andava pelas azinhagas a gemer as suas dores...”. De barriga, completa o governador.

         É claro que tal acontecimento teria que dar brado. Rapidamente a notícia chegou a Lisboa e um jornal de grande circulação nacional, “A Bomba Social”, logo mandou a Tavarede um dos seus jornalistas mais qualificados, para averiguar e noticiar a situação real do acontecimento.

         Delfim Pirolito, o jornalista, logo que chegado à terra do limonete, pediu audiência ao presidente nomeado, que lha concedeu de imediato. Vejamos como correu:

Presidente - Queira dizer.
Jornalista - Venho, comissionado pelo meu jornal, a indagar as causas da revolução que há dias rebentou em Tavarede e que, pelo que agora me disseram e eu estou vendo, saiu triunfante.
Presidente - Aqui tem o heróico comandante das nossas tropas que lhe põe tudo em pratos limpos.
Comandante - É simples. Fartos dos mandões da pátria do caranguejo, fizemos a revolução enquanto o diabo esfrega um olho e implantámos a República.
Governador - É p’rá frente é que é o caminho, que p’ra traz mija a burra.
Comandante - O sr. Presidente lhe explicará o resto.
Presidente - Ora vá tomando nota no canhenho. Primeiro do que tudo tenho a dizer-lhe que da Figueira não precisamos nem da ponta dum chavelho. Aqui temos tudo o que é preciso e para dar e vender.
Governador - Pois a Figueira ainda apanha o que nos cresce...
Presidente - A boa couve tronchuda, e bom nabo, o rico pepino, o belo tomate, repolhos grandes como nádegas de raparigas, e um fartote do bendito fruto...
Jornalista - ... Do vosso ventre?
Governador - Qual? Esse é todo apanhado pelas gandaresas...
Comandante - De peras é tal a fartura que comemos duas de cada vez.
Jornalista - Que lhe faça bom proveito.
Comandante - Belíssimos pêssegos...
Jornalista - Pêssegos também?
Governador - É riquíssimas pêssegas! Daqui!
Presidente - Finalmente, nem a verdura dos campos escapa.
Jornalista - Manducam também o verde?
Presidente - Como vê, não precisamos da Figueira para nada. Temos tudo: a estação do caminho de ferro, o matadouro, o Hospital Militar...
Comandante - E até o próprio cemitério é do nosso território.
Governador - Para encurtar razões: não teem onde cair mortos.
Presidente - Mas há mais: A Figueira sem Tavarede estaria na escuridão. A central da Companhia Eléctrica tem seu assento nesta freguesia.
Jornalista - E já cá chegou a luz eléctrica?
Presidente - Ora essa! Pois não havia de chegar?
Jornalista - Deixe-me V.Exa. tomar nota. Isso é muito importante. Porque me tinham dito que a terra era pequena e pobre.
Presidente - Sim. A terra é antiquíssima. Vem do tempo dos godos. Já foi rica. Agora não avesa cheta...
Jornalista - É como muitos fidalgos de quatro costados. Não tem riqueza mas tem nobreza.
Governador - Ora cebolório! Fidalguia sem comedoria é gaita que não assobia...
Presidente - Nos tempos antigos, no tempo dos godos, alumiava-se com tições e archotes de resina; depois veio o azeite, mais tarde a vela de cebo e o petróleo, depois a acetilene e, finalmente, a electricidade.
Governador - Olhe: aí vem a procissão das lamparinas.

         Depois de entrarem, cantando, são apresentadas ao jornalista. Primeiro a candeia de azeite, a mais velha, “sou a luz dos pobresinhos. O progresso persegue-me constantemente, mas a candeia velhinha existe ainda em muitas casas”. Depois o candeeiro a petróleo que fumaça como um catraeiro, “mas sou uma rica luz. Não cheiro bem, mas...”. Segue-se o acetilene que se cheira mal é porque tem o cano roto, pois que é um gás civilizado, mas se lhe chegam a mostarda ao nariz, estoira como uma bomba! Finalmente, chega a vez da electricidade, muito requestada pois “todos me querem em casa e até nas ruas, mesmo nos sítios mais escusos!”.

         Acabadas as apresentações as luzes saiem da cena, onde entra, momentos depois, a Comissão de Irmãos da Irmandade do S. Martinho que, saudando o presidente da República e dando a sua inteira adesão ao movimento, transmite a sua reinvindicação:

         “Excelência! Em nome da Confraria a que pertencemos, entrego nas mãos de V.Exa. esta representação. O que aí se pede é pouco, muito pouco, e esperamos que o governo nos atenderá! Queremos que seja revogada a lei das tabernas; queremos que elas estejam abertas a toda a hora, de dia e de noite, como as boticas; queremos inteira liberdade de culto e que cada um possa adorar o orago da freguesia a toda a hora que lhe dê na gana; e pedimos também que o governo dê um prémio por cada capela que de novo se abrir no território da nossa República”.

         Lá ficou o governo de estudar o assunto, pois os confrades tinham muita importância local, com festa que “começa pelo vinho novo e vai por todo o vinho velho!”. E continua a conversa, afirmando o presidente que “nada precisamos da Figueira, ao contrário, ela é que tudo precisa de nós. Não contente com o que nos come, até a água nos bebe...”.

         Pois, pudera! A água de Tavarede tinha fama universal e muitas propriedades urinéticas...


         “Puro engano, esclarece o presidente. A água que a Figueira nos chupa por um canudo, é para ela um verdadeiro canudo. Tem mais cal que os fornos da Salmanha”. E era bem verdade. A água ia para a Figueira, desde o Praso, lá ao cimo do Vale de S. Paio, da nascente do Olho de Perdiz, pela grande conduta que ia dar aos depósitos do Pinhal, aonde era tratada com cal antes de distribuída. “Agora a água da nossa fonte, isso é outra loiça! É especial. Fina, pura, saborosa, aveludada. É um regalo! Para desenvolver as teorias dos intestinos não há melhor...”.

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