sábado, 26 de setembro de 2015

Tavarede no Teatro -

         Foram recebidos, a seguir, os três estados vizinhos: Brenha, Quiaios e Buarcos:

Brenha -     Comigo ninguém caçoa.
Quiaios -    Pois comigo ninguém zomba.
Buarcos -   Sou um mar de levadia.
Os três -      São três estados d’arromba.
Brenha -    Sai dos meus quarenta fornos
                  A broa mais afamada.
Quiaios -   Tenho chouriço de palmo.
Buarcos -   Eu tenho a raia escalada.
Os três -      Broa, lavadeiras,
                    Pencas e pescada,
                    Ranchos, ferraduras,
                    Ai que trapalhada.
Brenha -     E a pinga
                    Que eu guardo nas minhas adegas
Quiaios -    Melhor o sumo cá do meco.
Buarcos -    Que o digam as minhas broégas.

Grã-Duqueza - Muito vos agradeço a honra desta visita de parabéns, e faço os mais sinceros votos para que se mantenham as relações de amisade que unem o meu Grão-Ducado aos 3 estados vizinhos.
Nêspera - Não tenho a honra de conhecer...
Comissário - São os 3 Estados vizinhos: Brenha, Quiaios e Buarcos. Brenha é rica, tem por lá muito dinheiro da sua terra. Fabrica broa na perfeição. Mas a especialidade é em lavadeiras.
Brenha - Em caso de revoluções é uma freguesia que nunca mais acaba. Eu lavo meio mundo.
Quiaios - E eu calço outro meio. Os ferradores de Quiaios teem fama. Os ferradores e os capadores.
Condessa - E os ranchos também são muito falados.
Ministro da Guerra - Eram coisa rica os ranchos do Recreio e da Lata.
Comissário - Da Lata? (áparte) Está a sonhar com a lambeta. Como se trata de rancho...
Quiaios - O Snr. General quis dizer amor e não lhe chegou a língua. Não é rancho da Lata, é Pica de Lata. Faltava-lhe a Pica, snr. General.
Secretário da Guerra - Isso não tem importância.
Quiaios - Mas os ranchos já pouco valem. Agora do que se trata é do Grupo Instrução e Recreio e do Quiaios Clube.
Comissário - E aqui tem Buarcos, terra de pescadores, donde nos vem a boa sardinha e o rico pilado.
Buarcos - Terra velha, meu senhor, bem experimentada na vida do mar. Ganha dinheiro, mas é pobre. Enfim, lá vai fumando a sua cachimbada.
Grã-Duqueza - Sabeis que o Pandorgas se prepara para vir atacar o meu Grão-Ducado? Espero que não o ajudareis.
Quiaios - Contai com o meu auxílio, Alteza. E a gente de Quiaios é gente rija; o nome o diz: Aqui há-os. Mandarei para cá todo o repolho e linguiça disponível que houver. E linguiça da boa, daquela que enche o olho e sabe ao pouco.
Buarcos - Por meu lado farei ir ao mar todos os barcos à pesca da raia, e às tropas de Tavarede não faltará bela penca.
Brenha - Alteza! Eu prontifico-me a lavar as ceroulas dos vossos regimentos. É tudo quanto posso fazer...
Secretário da Guerra - Não vai ter pouco trabalho.
Grã-Duqueza - De todo o coração vos agradeço.

Mal sairam os três estados, entrou um funcionário dizendo que o embaixador da China pedia para ser recebido imediatamente, para tratar de um assunto grave e urgentíssimo.

         Entrando, e depois de cumprimentar, lê a seguinte comunicação: “Averiguou-se que uma peça representada em Tavarede, chamada Lúcia-Lima, produziu na Rússia extraordinária impressão. A China é nessa peça metida a ridículo e isto fez com que os bolchevistas russos fomentassem a guerra que lavra no Celeste Império para lá implantarem o bolchevismo. Os autores da escandalosa obra são um poeta que esteve na terra dos pretos e tem o nome do rei preto e um maestro muito conhecido pela sua batuta fina e leve. Exija do governo de Tavarede a entrega dos dois facínoras à justiça chinesa ou uma indemnização de 10 milhões de libras”.

         Coitada da pequenina terra do limonete que tanta influência teve nos destinos políticos de um país tão grande como a China!... E agora? Para pagar tal indemnização não havia dinheiro e quanto aos autores “os dois bandidos, pagos com o ouro bolchevista, fizeram na verdade a tal Lúcia-Lima, mas isso foi ainda no tempo da República do Pandorgas”. E como eram inimigos declarados do Grão-ducado, não havendo cá a pena de morte, foram deportados, por toda a vida, para o inferno. Foram, pura e simplemente, mandados para o diabo!...

         É bastante curioso o autor incluir-se a ele próprio e ao seu principal colaborador, o musicólogo, no enredo da peça. E sem qualquer receio envia-se, com o companheiro, para as profundezas do inferno, como castigo pelo seu atrevimento. Uma pena bem quente, mas que não satisfez o embaixador chinês que, de imediato, declarou ir buscá-los ao inferno para os levar a julgamento no seu país. Mas não vai só. Nêspera Cajú quer conhecer os deportados e acaba por ir com ele.

                                                                  * * *

         Nos seus domínios, Lúcifer está aguardando a chegada de novas almas. A próxima, assim o julgava, era a de um falsário, ladrão, assassino e incendiário, que era coisa que havia muito não chegava áquelas paragens.

         Lamentando-se, chega uma bruxa mestra que havia sido enviada pelo mestre a Tavarede: “Não pude entrar em casa do Atanázio. Durante duas horas voei em torno da casa, mas sem resultado! Quando ia a entrar pelo buraco da fechadura senti uma picada de alfinete que me fez cair; depois quis descer pela chaminé, mas qual? Vinha de lá um cheiro a alecrim e uma fumarada que me empurravam para fora. Não houve maneira”.

         Perante a admiração de Satanás, explica-lhe o que descobriu: “Depois de dar muitas voltas ao redor da casa, fui pôr-me mesmo por cima da cama dele e fiquei à escuta. E então ouvi a mulher a rezar esta oração:

                    Eu me entrego a S. Silvestre
                    E à camisa que ele veste.
                    S. Silvestre de Monte Maior
                    Livrai a minha casa de todo o redor,
                    De bruxas e feiticeiras
                     E caldeadeiras.
                     Côco, três vezes côco,
                     Chave na mão, cadiado na boca”.

         Com tal reza, dita três vezes a seguir, não havia bruxa que ali conseguisse entrar. Eram espertas as tavaredenses. Conheciam bem como lutar contra o diabo e suas ajudantes!

         Quando os visitantes chegaram ao palácio, mandaram pedir para serem recebidos. Ao ser Satanás informado de que iam de Tavarede não se conteve e disse: “Tavarede pode orgulhar-se de ser o Estado da Terra que mais estreitas relações tem com o Inferno”, e manda chamar os dois hóspedes.

         Depois deles entrarem, Lúcifer informa-os de que têm duas visitas e que também estava a chegar uma nova candidata a bruxa, ida de Tavarede. Os dois hóspedes pedem para assistir à cerimónia da entrada para a irmandade das bruxas, da tavaredense que está a chegar. Como eram bons rapazes, lá acedeu Satanás, mas tinham de se esconder.

Coro - (entram as bruxas)    
   Como os morcegos,
    Bruxas ligeiras
    Voam de noite,
    As feiticeiras
    Sem medo a chifres,
    A ferraduras,
    Entramos sempre
   P’las fechaduras.
   Senhor Rei das profundesas
   Supremo génio do mal,
   Abençoai esta irmã
   P’ró fadário infernal.
   Somos as bruxas
   Sempre a girar,
   Corremos mundo
   Sempre a voar.
   Se nos apraz
   E dá na bolha
   Vamos por cima
   De toda a folha.

Bruxa Mestra - Comadre, fez o que lhe disse?
A Neófita - Sim, comadre. À meia-noite fui aos 4 caminhos, abri um pão ao meio, puz-lhe dentro sal e calquei-o a pés.
As Bruxas - Comadre, comadre, comadre, 3 vezes comadre.
Bruxa Mestra - Aqui lhe entrego este chavelho de carneiro onde guardará o óleo para se untar, que é feito de petróleo. banhas de cobra, e caldo de erva cidreira cozida com sapos e asas de morcego. Aqui lhe entrego este rabo de colher. Quando vier para o fadário passa com o rabo 3 vezes pela cara do seu homem e diz: “aqui te benzo c’o rabo desta colher. Não acordes senão quando eu vier”. Depois, despe-se, unta-se bem com o óleo do chavelho e diz: “avoa, avoa, por cima de toda a folha”. E pronto, fica a voar.
Poeta João - (deitando a cabeça, áparte) Há coisas que teem asas e não voam, estas voam e não teem asas.
Bruxa Mestra -(faz uma pirueta e dirige-se a Satanaz) Entrego-vos a nova comadre, Magestade. Peço para ela a vossa protecção.
Satanaz - (desce o trono e vem ao centro bradando, ao mesmo tempo que se produzem relâmpagos e as bruxas dão uivos) Bruxa! Bruxa! Bruxa! Tendes a protecção do Inferno.
Todas as Bruxas - Bruxa! Bruxa! Bruxa!
Satanaz - E agora ficai à vontade. (Satanaz sai)
Bruxa Mestra - Estavas com medo, comadre. Vês como o diabo não é tão mau como o pintam?
A Neófita - E ele bate na gente?
Bruxa Mestra - Não! E se batesse tu não estranhavas. O teu homem todas as semanas te dá uma sova.
Bruxa Francisca - Este fado é bom, comadre, mas é preciso ter cautela quando os mariolas dos nossos homens desconfiam.
Todas - Pois é.
Bruxa Francisca - Olhe, eu quando acabo o bruxedo, para ir meter-me outra vez na cama, tenho de bater três vezes com o trazeiro na pedra em que o meu homem bate a sola. Ele descobriu isto, e sabe o que fez uma noite?
A Neófita - Se calhar escondeu-lhe a pedra.
Bruxa Francisca - Pior ainda. Pôs a pedra numa fogueira, e quando vim... ai! nem quero que me lembre! Foi uma queimadela que me arrancou a pele. E assim andei mais de um mês.
Bruxa Aldegundes - A gente tem as famas de muita coisa que não fazemos. Qualquer coisa má que acontece dizem logo que foram as bruxas. O filho vai à salgadeira ao pai? Foram as bruxas. A mulher empenhou a roupa do homem? Foram as bruxas. Dão fome ao gado e o gado morre? Foram as bruxas. A filha anda esmiucada? É bruxedo.
Bruxa Mestra - É bruxedo, é... Também a filha do Zé da Matiôa tinha bruxedo, como a mãi dizia e eu bem vi sair de lá de casa um rapaz às 3 horas da madrugada. Diz que tinha sido o diabo e o diabo aqui a jogar às cartas muito descansadinho.
Todas - É verdade. Pouca vergonha!....

Bruxa Mestra - Bem, vamos cá a combinar o serviço para esta noite.

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