sábado, 5 de setembro de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 22

A mata do Rosa


         Uma pequena notícia, publicada num periódico figueirense, em Abril de 1898, informa que “segundo nos informaram, o solar e a quinta adjunta que o sr. Conde de Tavarede possuía na povoação donde tomaram o título”, havia sido vendido. Foi seu comprador Luís João Rosa, natural de Lavos. Mais acrescentava a notícia, que o sr. Conde mandara fazer leilão da mobília que possuía no solar, retirando-se para Trancoso, onde reside. A propósito desta mobília, contamos a sua história noutro local e o anunciado leilão nunca chegou a efectuar-se.

         O sr. Luís Rosa havia emigrado muito novo para África onde, depois de vários anos de trabalho, conseguiu juntar alguns meios de fortuna. Regressado à metrópole, por aquela ocasião, adquiriu a quinta e o palácio pela quantia de 5 000$00, dedicando-se à lavoura e ao comércio de gados, mantendo um talho no mercado da Figueira.

         Desde logo se integrou na vida social e cultural de Tavarede. Em Março de 1900, assumiu o cargo de presidente da direcção da Estudantina Tavaredense, então sedeada numas dependências do seu solar, mantendo-se no mesmo até à dissolução desta colectividade no ano de 1903.

         Por diversas vezes pertenceu aos corpos sociais da Sociedade de Instrução Tavaredense, como membro da assembleia geral e do conselho fiscal. Também foi membro efectivo da Junta de Paróquia local, tendo sido nomeado tesoureiro da primeira comissão executiva eleita após a implantação da República, exercendo, depois, o cargo de presidente.

         Nos de 1901 e 1902, Luís João Rosa concorreu, com produtos da sua quinta, à exposição industrial e agrícola, realizada na Figueira da Foz, obtendo “honrosas classificações”. Na última exposição conseguiu, segundo notas encontradas, menções honrosas nos produtos “couve lombarda” e “beterraba forrageira”.

         Apesar de ter feito parte de uma “Comissão de Beneficência da Freguesia de Tavarede”, nunca foi muito generoso nos seus donativos. Como exemplo, transcrevo um bocado de uma carta, publicada na “Gazeta da Figueira”, em Agosto de 1916. Tinha sido organizada, pela professora oficial da nossa escola primária, uma “Caixa Auxiliar”, com o fim de comprar livros, papel e inclusivamente roupa e calçado para os filhos de gente pobre que não tivesse recursos. Vejamos o tal recorte:

         “Para a direcção dessa Caixa constituíu-se uma comissão, a que eu pertenço também, que está encarregada do peditório de qualquer donativo e de arranjar pessoas que se queiram associar. Olhando para o fim a que se destina a referida Caixa, os sócios estão cheios de boa vontade e animados para trabalhar, ufanando-se por verem a sua pequenina terra seguir o caminho do progresso, mas ao mesmo tempo nada se consolam, porque já de há muitos anos Tavarede precisa duma casa própria para a escola oficial, e este ano, constando que já havia dinheiro para a sua construção, não vimos meios disso, porque a principiar-se, devia ter sido em Junho findo, como se fez nas Alhadas, no Paião, Lavos, etc. Em Tavarede... nicles.
         Nestas freguesias do concelho já andam em construção os novos edifícios escolares, porque as respectivas Juntas de Paróquia constantemente pediam á Câmara aquele melhoramento para as suas terras, o que acho muito justo, porque lhes era mesmo indispensável; mas nós, infelizmente, não temos uma Junta que proceda, isto é, que trate de oficiar á Câmara lembrando-lhe, sequer ao menos, que Tavarede também pertence ao concelho da Figueira da Foz.
         Não é bem a Junta da Paróquia quem tem culpa, mas sim o seu presidente, que é homem que nunca oficiou á Câmara reclamando aquela construção.
         Dar-se-á o caso que o sr. presidente não saiba fazer um... oficio, como o outro dizia, lembras-te? Sim, quem sabe se ele o saberá fazer?
         Olha que sempre é um homem que nunca reclamou absolutamente nenhum melhoramento para Tavarede... perdão, reclamou tal, a construção de um muro qualquer na Várzea, mas deve-se notar que sempre é muro construído na sua propriedade.
         Eu te conto, Aníbal, uma coisa que prova evidentemente que o mesmo senhor nada se interessa por Tavarede:
         A direcção da Caixa Escolar foi um destes dias ter com ele, pedindo-lhe que ou se associasse, ou concorresse com qualquer quantia. Sabes com quanto assinou? Com 30 centavos - 300 reis!! (e vá que já não é pouco!), e  respondeu ao mesmo tempo:
         - Tomem lá três tostões, porque eu nada me importo com Tavarede, com o povo de Tavarede, nem quero saber de Tavarede para nada.
         Ora isto é impróprio de se dizer, e o sr. presidente, conhecendo bem o honroso cargo que lhe confiaram aquando das eleições - que mais valia elegessem o Manuel Fandango - fazia uma bonita figura, mas mesmo bonita, se assinasse os 300 reis e se calasse, não é verdade?
         Presidente de penacho, há-os por uma pá-velha.
         Calcula tu, Aníbal, como é que os rapazes que foram a sua casa - aliás palácio, sim, porque é o velho palácio do antigo conde de Tavarede - haviam de ficar. Embaçados, com aquelas e outras grosseiras palavras, que não contavam saíssem da boca do sr. Luís João Rosa, digníssimo presidente da Junta da Paróquia da freguesia de Tavarede.
         Olha, o José Cordeiro, com o dinheirinho na mão, raspou-se, seguindo-se-lhe o César Cascão, António Coelho, João da Simôa, etc. Se tu visses o Jaime, que apesar de ser o último e coxear um pouco, ainda chegou á rua primeiro que todos, dizendo:
         - Safa, que d’esta nos livrámos nós! Podemos louvar a todos os santos por não comermos alguma bengalada!...”.

         Poucos meses depois, em Outubro de 1916, faleceu, sendo sepultado no cemitério local. Era casado com Ana Jorge Rosa, conhecida na terra por “senhora Aninhas”.

         Ora Luís João Rosa, quando regressara de África, trouxera consigo um filho, fruto dos seus amores com uma nativa, o qual, parece, não seria inteiramente normal. E em Abril de 1917, na “Gazeta da Figueira”, saiu publicada esta curiosa notícia:

         “Tem sido o pratinho do dia o consórcio do mulato de nome Augusto Rosa com uma velhinha que já não tem dentes para roer as côdeas das tortas...
         O noivo, que é filho do falecido Luís João Rosa, é um rapaz dos seus 25 anos, e a gentil noiva conta nada menos dos seus 69.
         Mas, como os tempos vão bicudos, hoje tudo se aproveita; deve sair uma casta admirável”.

         Dias depois o mesmo jornal informa que “o consórcio do mulato Augusto Rosa com a velhinha sua criada, e que se efectuou na repartição do Registo Civil dessa cidade, não está legal e por isso a família dele trata de os descasar…”. A razão de tal impedimento surgiu dias mais tarde, com a publicação de uma carta de Francisco Luís  Rosa, residente em Lisboa e tio do noivo.

         “Sr. redactor – Em carta de Tavarede publicou a Gazeta de 21 último a notícia de não estar legal o casamento do mulato Augusto Rosa e de que a família dele trata de o descasar.
         Assim acontece, com efeito, e como eu represento a família a quem o articulista se refere, permita-me esclarecer a notícia e o caso para que os seus leitores melhor possam conhecer do que se trata.
         Meu irmão Luís João Rosa, vindo a Lisboa em 10 de Outubro último, declarou-me que ia fazer testamento e nomear o sr. João dos Santos, dos Condados, como tutor do mulato, seu filho, Augusto Rosa, maior, de 28 anos, que é a quem se refere a notícia.
         Voltando para a sua casa da quinta do Paço de Tavarede, bem disposto e apenas queixoso de inflamação numa perna, poucos dias depois faleceu e de maneira a deixar-me algumas dúvidas quanto á causa da morte. Sendo só então eu ali chamado por um primo (e não pela viúva) soube não haver testamento.
         Ora, no princípio deste mês fui surpreendido com a notícia de que em 20 de Março último tinham levado o mulato a realizar um casamento civil provisório com a velha criada e cozinheira da casa, por ter urgência para tratar dos seus negócios, consoante se requerera ao sr. dr. delegado.
         O Entrudo passara pouco antes e os folguedos da época tinham sido proibidos por decreto ou lei. Assim pensava quando a seguir tive notícia de que logo em 1 deste mês tinham levado o mulato a firmar uma escritura de partilhas amigáveis com a madrasta e no dia seguinte a firmar outra escritura de doação do seu património á mesma, a interessante Senhora Aninhas, que a Figueira conhece! E que nesta escritura de doação ficara previsto o internamento do infeliz em algum manicómio!...
         Depois destes negócios realizados, foi que se publicaram os éditos do casamento e então fui opor impedimento por demência notória, o que faz com que o casamento não produza efeitos jurídicos enquanto não se provar a improcedência do impedimento.
         Em resumo, eis o caso. Escandaloso? Sei lá! Aí ficam com alguns elementos de apreciação; outros virão depois.
         Aos leitores que não conheçam o meu infeliz sobrinho, garanto que ele nunca teve nem tem capacidade para tratar de qualquer negócio. Cautela, pois, contra novas surpresas das criaturas envolvidas no caso.
         Pela publicação desta carta se confessa grato. Francisco João Rosa”.

         Certamente que estaria em causa o valor da herança, que não seria de desprezar. Mas, em Tavarede, não levaram a bem a intromissão verificada e o correspondente do mesmo jornal de imediato responde.

         “O sr. Francisco João Rosa, bem conhecido por todos os legítimos sucessores de Galeno e de Paracelso, do laboratório das repartições públicas, que nem sempre tem âmbito para grandes reacções, principalmente se o operador é despido de boa presença de espírito e daquela sã prudência e cautela que exigem todos os casos delicados ou difíceis, passou para o laboratório da imprensa, aonde lhe não foi preciso empregar todos os caracteres do alfabeto, para obter um produto composto de diversas palavras, todas cianídricas e capazes de... intoxicar metade desta linda Figueira, com a qual pretende criar meio para justificar-se de haver... impedido o casamento do seu sobrinho, acusando este de ser um... demente notório!
         Que singular e recente descoberta fez o sr. Rosa, que ainda não há muitos meses reconhecia o seu sobrinho com plena capacidade civil para reger a sua pessoa e bens, e tanto que o acompanhou a um notário para ele outorgar uma procuração a um advogado para o representar num inventário entre maiores!...
         Nessa altura, positivamente, o sr. Rosa pensava diferentemente, ou então era cúmplice consciente dum verdadeiro crime, por não acusar ao dr. Curador Geral a notoriedade de demência do seu sobrinho, para s.exa. intervir no inventário, conforme a lei prescreve.
         Ora a verdade é que o sr. Rosa, com aquela sua indicação nos negócios do seu sobrinho, reconheceu-o capaz de seguir e zelar os seus interesses, capacidade que os autos do inventário largamente demonstram; todavia, veio em auto público levantar o impedimento ao casamento, pelo fundamento de ser ele um... demente notório.
         Haverá alguém capaz de afirmar que motivos de honesto altruísmo chamaram a esta cidade o ilustre químico, distraindo-o das lucubrações do seu laboratório, para assinar o auto declaratório do referido impedimento?
         Parece-nos que não.
         O ilustre analista, que só muito pela rama conhece o sobrinho, veio lá de longe, da capital, trazer á Figueira a novidade, ainda não conhecida aqui, apesar de velha, de ser ele um demente notório!
         Que cambada de parvos todos nós aqui somos, que ainda ninguém havia dado por tal!
         Demência notória!... esta nem ao diabo lembra, quando não tem sono.
         Será aquela afirmação do famoso homem de ciência a denúncia de algum estado mórbido do seu cérebro, provocado pela ambição ou egoísmo de... prestar, agora, ao sobrinho, cuidados e atenções capazes de fazerem dele um homem... notório, digno do tio?
         Por enquanto não se sabe, mas deve vir a saber-se.
         É assunto que merece alguma atenção e estudo, a que não fugiremos, como criatura que, profissionalmente, está enrascada no caso, que até talvez venha a ser desvendado a toda a luz duma crítica alegre, em algum palco cá do burgo.
         E se assim for, teremos o prazer de oportunamente oferecer um camarote ao ilustre sábio, sagaz descobridor da notoriedade de demência do sobrinho, pela qual muita e boa gente ainda não havia dado, apesar de ele por aqui estar há 19 anos e ser daqueles que facilmente se fixam, como diria o dr. Vilela aos seus discípulos da cor do sobrinho do sr. Rosa”.

         Não temos mais notícias do caso. Mas, em 29 de Maio do ano seguinte, aparece publicada a seguinte: PREVENÇÃO - Constando que a viúva Ana Jorge Rosa pretende vender a quinta do Paço de Tavarede e fazer outras transacções sobre bens do casal inventariado, deixados pelo marido Luís João Rosa, declara-se que tais negócios não serão válidos enquanto não for legalizado o casamento do filho do falecido.  (a) Francisco João Rosa.


         Apesar de diversas tentativas, não consegui apurar como terminou o caso, se o casamento acabou ou não por ser validado e quem recebeu a herança. O que todos sabemos é que o solar e a quinta acabaram por ser vendidos ao sr. Marcelino Duarte Pinto, por sinal também ele talhante no mercado da Figueira.


         Como curiosidade termino com o seguinte comentário: o solar, sempre continuou a ser conhecido como o “palácio dos condes de Tavarede”; a quinta, ficou conhecida por “quinta do Marcelino”; e a mata, abatida para urbanização, ficou sempre denominada por “mata do Rosa”… 

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