sábado, 12 de setembro de 2015

Tavarede - a terra de meus avós -23

Um cortejo reaccionário…



         Quando folheávamos os nossos apontamentos, despertou-nos a atenção uma local, publicada no jornal “Correspondência da Figueira”, em Outubro de 1881. Diz assim:

AO SR. BISPO-CONDE

         Não somos denunciantes de pessoa alguma, mas não podemos também deixar de fazer subir ante s.exª. as queixas que por aí se ouvem com respeito ao reverendo que está encomendando a freguesia de Tavarede.
         Pode ser que haja exagero no que se diz, e cremos até que assim seja; mas dando-se os devidos descontos e feito um abatimento de cinquenta por cento, fica ainda uma carga regular para o tal reverendo.
         Bom seria, pois, que s.exª. mandasse apurar o que há de verdade por meio de uma sindicância. Nem queremos que aquele pastor esteja sendo vitima de acusações menos verdadeiras, nem que continue apascentando o rebanho que lhe está confiado, se não está nas condições de bem cumprir os espinhosos deveres da sua missão.
         É certo que o sr. Bispo Conde não tem sido de uma escrupulosa imparcialidade para com alguns dos seus irmãos em Jesus Cristo neste concelho; cremos, porém, que, neste caso, cerrará ouvidos a pedidos, e fará justiça recta, embora tenha de sacrificar o tal encomendado.
         E assim o esperamos confiadamente: de contrário, e ainda sob pena de qualquer excomunhão com que s.exª. nos possa fulminar, não cessaremos de pedir que se olhe com misericordiosos olhos pelos católicos romanos da freguesia de S. Martinho de Tavarede.

         Curiosamente, só anos mais tarde encontrámos a explicação para aquele alerta ao Senhor Bispo, e num outro periódico: “Comércio da Figueira”. Era, então, pároco em Tavarede o reverendo António Augusto da Silva Nobreza. A Junta de Paróquia era à altura constituída por João José da Costa, da quinta dos Condados, José Maria de Almeida Cruz, Manuel Jorge da Silva, António da Cruz, José Luís Inácio e José Maria Luís.

         O reverendo padre, e isso era normal naqueles bem complicados tempos, andava de “candeia às avessas” com muitos dos seus paroquianos e, também, com a própria Junta. Antes que me esqueça, recordo que a Junta de Paróquia tinha instalação numa dependência da Igreja matriz, junto à sacristia, onde se reuniam e guardavam as suas coisas.

         Na acta de 9 de Janeiro de 1881 a Junta deliberou exarar em acta todos os benefícios que o seu presidente, João José da Costa, tinha feito em benefício da paróquia. João Costa havia assumido a presidência da Junta, depois de ter sido presidente da Câmara da Figueira durante vários mandatos, e mandara fazer, à sua custa, importantes melhoramentos para a nossa terra, nomeadamente o teatro na sua casa do Terreiro (1885). Relativamente à Igreja, e segundo aquele registo, havia suportado os seguintes custos:

         = doação da quantia de 19$200 reis para compra de um terreno para alargamento e aformoseamento do adro da Igreja;
         = pintura do teto da Igreja e arco cruzeiro, no valor de 54$645 reis;
         = encarregou o reverendo pároco de mandar vir de Lisboa o lustre, que custou 37$580 reis, vindo tudo a importar em 111$425 reis.

         Entendeu, portanto, a Junta de Paróquia não ficar silenciosa a tão grandes e relevantes serviços prestados por aquele senhor, pelo que “aqui os deixa narrados, para que os presentes e vindouros se recordem sempre com viva saudade de tão benemérito cavalheiro”.

         Mas a Junta havia começado a receber muitas reclamações dos seus paroquianos relativamente ao reverendo Nobreza, a quem acusavam de parcialidade e não cumprimento das suas obrigações religiosas para com muitos.

         “Sejam quais forem os direitos de intervenção e atribuições do pároco em relação ao assunto (tratou-se de um funeral), não há nem podem haver leis canónicas, nem as da constituição do bispado, que autorizem e concedam poderes discricionários, e tão abusivamente praticados, que permitam ao pároco a exclusiva imposição da hora, porque é repugnante e intolerável, de consequências perniciosas como acaba de se dar, e por isso exigem que sejam repelidas pela mesma forma como se exercem e praticam.
         É bem conhecido, que o pároco de uma freguesia tem obrigações permanentes e inadiáveis a cumprir; vive à custa dos paroquianos, que exclusiva e directamente lhe pagam para prestar-lhes os serviços que a religião estabelece, não podendo ser substituídos senão por um sacerdote; portanto o pároco nunca pode dispor da sua pessoa por forma que se fique absolutamente inibido da sua concorrência pessoal na freguesia, e quando um comprometimento meditado o não possa fazer, é costume e sua estrita obrigação prevenir um sacerdote, por forma que sendo chamado, acuda e satisfaça aos actos e obrigações, sejam eles conhecidos ou acidentais, pois que o pároco não exerce profissão de padre como um ofício qualquer de que se recebe salário em certas e determinadas horas de serviço, para ir quando, como, e aonde lhe for vantajoso ou agradável: tem os encargos e obrigações exclusivas da religião, que queira ou não há-de forçosamente cumprir. É nenhuma a consideração que este sacerdote presta ao cumprimento dos seus deveres e obrigações, praticando abusos e excessos que o qualificam impróprio e incapaz de exercer este ministério”.

         Prosseguem as actas com um chorrilho de acusações ao pároco, notando-se, perfeitamente, que era mais o adversário político que se atacava do que o padre da freguesia.

         Em Agosto de 1884, solicitou a Junta autorização, com carácter de urgência, à Comissão Distrital de Coimbra para umas obras absolutamente necessárias. Apesar do pedido de urgência, a resposta não chegava, até que, no dia 18 de Setembro pelas 7 horas da manhã, o padre Nobreza, avistando da janela o presidente João Costa, que recolhia a casa de um pequeno passeio matinal, foi atrás dele e entregou-lhe um ofício que tinha em seu poder, sem saber como lhe chegara…

Era um ofício datado de 30 de Agosto, em resposta ao seu e no qual solicitavam esclarecimentos adicionais necessários à autorização requerida. Para justificar o atraso na resposta, solicitou a Junta, em ofício dirigido ao pároco, a informação de como o ofício fora recebido em sua casa e por que só passados tantos dias lho entregara.

Pois só no fim de Outubro o padre Nobreza respondeu dizendo “ignoro, para dizer com segurança, como o ofício que lhe entreguei, veio ter a esta casa, nem mesmo sei dizer o dia em que chegou, pois foi em ocasião em que eu não estava, sendo recebido provavelmente por minha criada com a minha correspondência. É certo que há poucos dias dei com ele envolvido com outros papéis, e vendo vossa senhoria da minha janela me resolvi a ir pessoalmente entregá-lo fazendo conhecedor nessa mesma ocasião dos motivos de demora”.

Os ânimos azedaram-se, de tal forma que o pároco chegou a dar ordens ao sacristão para não abrir a porta da Igreja para entrarem para as reuniões. O presidente João Costa não hesitou mais. Sendo dono de uma casa velha que estava desocupada, de imediato resolveu para ali mudar a Junta e mandou buscar a mobília e mais pertences que, com grande oposição do padre Nobreza, o sacristão acabou por entregar.

Como referi tudo isto não passavam de questões políticas. E para o confirmar vou acabar a historieta da mudança da Junta da Igreja, com a transcrição de um caso bem elucidativo. Em Novembro de 1883 houve eleições municipais. As urnas deram a vitória ao partido do padre Nobreza e seus correligionários. Eis a transcrição da comemoração dessa vitória:

“O padre entusiasmado pela glória que o aureolava, entendeu dar uma pública demonstração do seu regozijo e satisfação digna da sua pessoa e companheiros, pelo prestígio e influências irresistíveis que acabavam de fundar e estabelecer sobre os despojos mortais do que chamaram partido progressista em Tavarede; para isso convencionou com a garotada de celebrar uma procissão de enterro, envolvendo o nome de alguém a quem só na ausência podiam impunemente insultar.
Com efeito na segunda-feira posterior da dia da eleição, tendo-se efectuado a reunião de todos os mordomos da festa-fúnebre no local aprazado, que foi dentro dos umbrais do portão de entrada da quinta do exmo. Conde de Tavarede e onde sua exª tem o seu solar e residência, desfilou o préstito, indo todos os da comitiva envolvidos em lençóis, lançada uma ponta pelas cabeças com o rosto descoberto e archotes na mão. Precedia o sacristão António Gaspar de Figueiredo, tangendo uma campainha da Igreja (que precede procissões e enterros quando se trata de chamar a atenção dos fieis cristãos   
a um acto religioso). Seguiam António Proa, com uma colcha de chita arvorada em uma haste servindo de guião; acompanhavam António Carlota, António Cascão, Joaquim Nunes, João Ceiça, Manuel Pata, o regedor Manuel Luís Inácio e filhos Bernardo e José Maria, de Tavarede; Joaquim Mendes, o Bairrada, de Caceira, e ainda uma porção de garotos da Figueira e uns três de Caceira, companheiros do Bairrada; no fim João Proa, tocando tambor em uma caldeira, entoava o responso “chorai, filhos, chorai: morreu o partido progressista, vamos enterrá-lo e com ele lá vai a importância do João Costa; quem compra o beiço?”. Seguiam-se sentidos ais.
         Fechando o préstito ia o reverendíssimo António Augusto da Silva Nobreza, pároco desta freguesia, sem disfarce algum, levando na mão um livro, que deveria ser substituído por uma borracha ou picheira, como emblemas da sua Nobreza; e a seu lado José Maria Luís. Sentimos que este homem, aliás bem intencionado, se deixasse ir à discrição da canalha.
         Chegados ao adro da Igreja, porque caíram sobre o acompanhamento umas pedradas, e porque se não viam os impulsores, compreenderam que a ousadia provinha de quem pouco podia arrecear-se. E de noite todos os gatos são pardos, resolveram retroceder e não chegaram ao cemitério para onde se dirigiam e ali devia o reverendo entoar o De profundis…”.


         Atenção, tudo isto transcrevi das actas da Junta de Paróquia que foram publicadas na imprensa. Não há duvidas de que o facciosismo político levava pessoas responsáveis um pouco longe demais!...

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